Amón era sozinho. Sozinho como um lírio que cresce no meio de um jardim só de verdes. No meio da noite. Enquanto tudo mantém suas cores de sempre, seu crescimento natural e sua rotina habitual, Amón se desespera por cores que são fora do comum, por uma desordem nas formas e fórmulas e um jeito diferente de aproveitar o próximo segundo.
Tudo parece tão fácil enquanto não sai de sua cabeça. A perna esticada formando a linha perfeita, até a ponta do dedão, é capaz de movimentos infinitos num palco em seu todo escuro, cortado somente por um único foco de luz. O joelho se flexiona em frente ao umbigo, aponta para a direção contrária e a perna se desenvolve por sobre a outra. Desenhando um círculo em sua frente, se movimenta no ar para o lado de seu corpo. Do ponto mais alto, desce.
A mão direira com os dedos levemente separados fazem movimentos circulares na frente de seu peito. Olhos fechados. Sem música, sem sons. Um desafio à gravidade e à dialética do silêncio. Palma virada pra cima. O braço leva o conjunto de dedos para o ponto mais alto que a mão de Amón consegue chegar numa diagonal apontada para o canto direito daquela escuridão onde supõe-se estar a platéia.
Nenhum ruído. Nenhum choro de bebe. Nenhum cochicho sobre o que veste o único ser sobre o palco. Podem se perguntar onde está a música, a melodia. Deverá aparecer a qualquer instante tambores africanos ou taikos chineses que quebrarão toda aquela calma e desespero encenada nos movimentos em cima do palco. Nada.
Os segundos parecem passar depressa. Quando menos esperarem já haverá outro corpo, outras presenças, com outras luzes e outros movimentos. Talvez cadenciados, juntos e sequenciados. Talvez separados, desregrados, desnaturados.
É arte. É arte? Deve ser arte... se os pensamentos fossem colocados em balões como nos quadrinhos, o negro se recobriria de vários pedaços brancos com as mais diferentes exclamações e dúvidas.
o outro braço continua a reta que o dedo médio começa no plano maior. Apontado, porém, para o contrário do primeiro. Os dedos, agora do pé, começam a sentir o peso do corpo de Amón ser projetado para frente. Ele não sobe sobre a ponta do dedão. Está descalso. Isso não é ballet, não parece ser jazz. Sua perna direita se ergue aos poucos compondo o equilíbrio perfeito. O azul do cetim brilha com a iluminação que recebe.
Voar, ele quer voar. Sozinho no palco e quer voar para longe. Para as núvens provavelmente. Um deus grego, ou seria egípcio? Se fosse o segundo teria elementos dourados pelo corpo. Romano provavelmente seria vermelho. Azul? O que pode ser esse azul?
Do equilíbrio perfeito, o caos instaurado. A perna de trás sobe até transformar os membros inferiores em uma única reta. A metade de um H. Sem luz, ainda sem som.
Ainda? Quem disse que haverá som? Dança é a interpretação visual da música. Mas que música se Amón está no meio do silêncio e do nada? Deve ser loucura uma abertura de espetáculo como essa. Não vale o quanto se paga para entrar. Voltariam só para ver esse equilíbrio. Prefiro filmes de comédia. Onde está? Com a escuridão não é possível ver nada. Que bela porcaria! Ah, até que enfim.
Um tambor leve bate não se sabe de onde. As caixas de som espalhadas pelo local enganam a percepção espacial da platéia. Seria um tambor mesmo ou é mais uma gravação? Um som fino. Não é uma flauta. Talvez a nota mais aguda de um violino.
Syra era sozinha. Sozinha como um rubi no meio de tantos cristais no colar mais caro trabalhado por ourives indianos. Enquanto todas as pedras mantém suas cores brilhantes e sensuais. Syra se fazia presente em um vermelho único e reluzente.
Mais um? Agora uma mulher, talvez uma companheira. Essa é bonita, tem um belo corpo. Isso aqui está ficando chato demais, vai acontecer alguma coisa ai em cima? Pelo menos agora tem um sonzinho, por mais irritante que pareça ser. Gosto do som de violino, acalma.
Os braços esticados para os lados deixava suas costas ainda mais abertas, cortadas somente pela longa trança de um cabelo negro. O direito sobe lentamente, movimento contrário faz o outro braço. Curvada, Syra ficou curvada para a esquerda. Sua perna direita se levanta até a metade de seu corpo e se dobra. Seu calcanhar se apoia sobre o joelho da perna que continua apoiada no chão.
Isso seria uma letra? Engraçado a trança dela não se meche, seria uma tatuagem? Que lindo esse vermelho que escolheram! Que horas são?
Syra sente o ar encher seu pulmão. O incenso de lavanda que produz uma leve fumaça na cochia e deixa o ambiente ainda mais introspectivo. Esse é seu momento. É único. O silêncio contribui para a grandeza do seu ato. Voltando o tronco na posição inicial, seus antebraços se dobram e vão até as costas de Syra. Cada um para um lado, cima e baixo. As mãos se encontram bem no meio das costas, os dedos se cruzam.
Uma voz masculina em uma língua totalmente estranha fala algumas palavras repetidas. Um gemido feminino parecido com um suspiro preenche a escuridão. Violinos. Mais de um, pelo menos três, em notas rápidas e agudas começam a introdução de uma música diferente.
Suspiro. Imaginação. Fantasia. Um mundo onde tudo é possível. O poder do ser onde nada mais importa, do estar onde o porquê não existe, do viver o quanto for necessário viver.
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