Uma revolta contra a política educacional, contra a inércia brasileira e a cegueira jornalística do interiorNascido em Limeira, há duas horas de ônibus de São Paulo, sou um filho legítimo do Brasil. Qualquer semelhança é mera coincidência.
Mamãe e papai se casaram há mais de 25 anos e se separaram há cerca de quatro. Quando se conheceram, ela era trabalhadora, ele também. Ela filha de descendentes de espanhóis e italianos, ele de um italiano imigrante. Meus avós maternos pobres, os paternos tiveram bens e uma fábrica de tanques no passado.
Os dois, papai e mamãe, estudaram. Completaram o Ensino Médio, antigo ginasial, e alguns anos depois se matricularam numa faculdade particular de Limeira, Isca Faculdades. Ela cursava contabilidade, ele economia. Abandonaram o curso ainda nas matérias elementares da área para casarem e começarem a construir a casa onde estou neste momento escrevendo este texto.
Começaram pelos fundos do terreno. Na verdade começaram emprestando dinheiro do dono da fábrica de tanques, meu avô, para comprarem o terreno. Eram cinco cômodos, uma varanda grande e um enorme quintal. Quintal onde vi crescer morangos quando tinha cinco anos e onde colho acerolas hoje em dia. O espaço verde está menor, porque os cômodos da casa foram aumentando conforme a família cresceu. Do casal de ex-universitários, em 1986, passamos a três indivíduos nos 360 metros quadrados num bairro pouco afastado do centro comercial de Limeira. Menos de três anos depois já éramos quatro, com minha irmã caçula, a última da produção.
De quatro cômodos a casa passou lentamente para um número bem maior. Tão lentamente foi a ampliação que alguns detalhes foram terminados só no final da década em que vivemos, em pleno século 21.
Acredito que com cinco anos, ou menos, eu já estava matriculado em alguma escolinha. Pré-escola, ou maternal, não sei qual o nome que recebia as escolas “CIP” e “Cavalinho de Pau”, dois lugares que guardo algumas lembranças, poucas, mas há algumas. Depois dessas veio minha iniciação na vida legítima de um brasileiro. Fui matriculado na escola infantil “Chapéuzinho Vermelho”, próximo ao Mercado Municipal, escola municipal.
Um lugar muito gostoso onde aprendi as primeiras letras, como juntá-las com um lápis no papel e como pronunciá-las em sílabas e palavras. Tudo com uma ajuda de minha tia carinhosamente chamada de “Tica”, nascida Maria Luiza. Enquanto mamãe e papai trabalhavam, era na floricultura da tia Tica que passava o tempo entre escola e retorno para a casa.
Da escola com nome de conto de fada infantil para uma de nome mais ousado e bem maior: Escola Estadual de Primeiro e Segundo Grau “Brasil”. Era o máximo ver alunos bem mais velhos, da quarta ou oitava série com o mesmo uniforme. Um prédio tão grande, na época passava pela última reforma que contrastava o velho com um modelo arquitetônico público atual, todo cinza, sem reboque, só tijolos, acho que é assim até hoje.
No primeiro dia de aula, lembro bem, estava ansioso para começar a escrever. Enquanto arrumava as canetas e o caderno brochura em cima da carteira de tampo cor creme e estrutura metálica verde, a professora conversava com alguém na porta. Naquela escola tive até aulas de música - tocávamos alguns instrumentos sem noção nenhuma, mas sempre copiávamos algumas músicas no caderninho dedicado exclusivamente a esta disciplina e íamos para uma escada, num lugar afastado das demais classes, para cantarmos e tocarmos, ou melhor, fazer barulho. Além de música, lembro também das aulas de matemática. Usávamos canudinhos, desses de tomar refrigerante, para contar dezenas, centenas e unidades. Existia até uma competição para ver quem tinha mais e os mais bonitos da sala.
Tempos bons.
Na segunda série mudei de escola. Foi no ano em que não existiria mais escola de primeiro e segundo grau juntas. Parte dos meus coleguinhas de classe foi transferida para uma escola municipal chamada Lázaro, eu comecei a estudar em uma perto de casa, Escola Estadual “Professor Antônio de Queiroz”. Considerada muito boa entre mães e professores na época. Um prédio também grande, com escadarias, corredor grande e doze salas vizinhas. Uma quadra grande até então descoberta e outra menor do lado onde passávamos os recreios jogando queimada com as bolinhas da Coca-Cola.
Lá passei seis anos de minha vida. Era feliz. Principalmente porque podia acordar dez minutos antes do meio dia e ir para a escola correndo sem encontrar o portão fechado. A escola fica a três quarteirões de casa, com direito a dois bares no meio do caminho onde comprávamos chicletes, chocolate e bala. Lembro com mais clareza das professoras e das aulas. “Dona Célia”, de História, costumava passar até três lousas de matéria. As salas tinham lousa na frente e atrás, ela fazia questão de usar as duas. Não me lembro se explicava a matéria tanto quanto copiava o texto do livro, mas ficávamos cansados de tanto escrever em sua aula.
Depois da professora Solange de Educação Artística, a professora, ou também “dona” Vera, de ciências era minha preferida. Adorava aprender sobre ponto de gravidade, sistema reprodutor das plantas e outras matérias da sua área. Ela e a professora de português, Maria Helena, foram as melhores da época. Impunham respeito e eram rigorosas com a disciplina. A bagunça alguns dias era incontrolável, afinal, só quando saímos da escola que percebemos quanto tempo perdemos falando alto, brincando e correndo pelo corredor. Mas deve ser difícil segurar uma criança por tanto tempo numa carteira – imagino hoje em dia, o desafio que deve ser.
O Ensino Médio fiz longe de casa. Escola Estadual “Professor Antonio Perches Lordello”, uma chatice, conhecida como prisão pelos alunos e elogiada pelo rigor que a antiga diretora, Dona Minerva, impunha para alunos e professores. Deve ter sido uma herança da ditadura militar, afinal havia mais regras que espaço aberto para os alunos respirarem um ar fresco. Hoje há menos espaço com céu livre ainda considerando que a quadra foi coberta e esta costumava ser o local onde tomávamos sol em dias frios. Não se podia usar chinelo, não podia entrar de piercing, não era permitido tatuagem, era preciso levantar ou tirar a blusa de frio para mostrar o uniforme e todo santo dia havia mensagens da vice-diretora popstar. Os primeiros minutos da primeira aula eram exclusivos para suas palavras, avisos e advertências em públicos para as salas que não se comportavam.
Foram três anos, passaram rápido, mas foram péssimos. O motivo de tanto ódio para com a escola é que o local parece a Índia: dividida em um sistema de castas. Alunos eram, e ainda são, classificados pelo dinheiro e pela inteligência. Os melhores de bolso e de cérebro ficavam nas séries um, dois ou três. O número ia decrescendo assim como a qualidade da sala. Era, e é, revoltante uma escola que deveria preservar o direito constitucional da igualdade fazer tal distinção entre os alunos. Estudei no 1º4, 2º2, 2º1 (promovido por conta de um bom resultado em um simulado interno) e conclui essa fase escolar no 3º 7, a pior sala da manhã.
Nestes mesmos anos ainda cursei Técnico em Administração na Escola Técnica Estadual “Trajano Camargo” e Técnico em Informática no Colégio Técnico de Limeira (Cotil – Unicamp). Não fiz estágio nem nunca trabalhei em nenhuma das duas áreas.
Ao me formar, o recém-empossado presidente petista Lula “lançou” o ProUni – Programa Universidade para Todos. Naquele ano fiz o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), tive uma boa pontuação e consegui uma bolsa de 50% para cursar uma faculdade particular. Me inscrevi na mesma faculdade dos meus pais, Isca, no curso de Jornalismo.
Foi uma área que me identifiquei bastante, fiz estágio, fui classificado em um prêmio importante para estudantes da área e trabalhei por pouco mais de um ano, depois de formado, contratado como Auxiliar de Redação em um jornal de Limeira. Fui demitido e finalmente batizado como filho legítimo do Brasil: desempregado, estudante de escola pública durante toda a vida e com todos os requisitos básicos para ser mais um cego e alienado na multidão que segue a inércia das políticas públicas e o domínio cultural promovido por grandes empresas e poderosos “pensadores” nacionais.
De todos meus amigos das épocas do Ensino Médio e Fundamental, é possível contar no máximo em duas mãos o número de pessoas que seguiram uma vida acadêmica em uma universidade pública. Tentar sei que vários tentaram, mas muitos, assim como eu, pagaram pela sua “Educação Superior”.
Atualmente estou fazendo cursinho pré-vestibular para participar dos vestibulares das universidades públicas de São Paulo. Já formado jornalista e com um objetivo profissional bem definido, vou diariamente para as carteiras do cursinho reaprender o que o tempo e a má qualidade do ensino fizeram o favor de não fixar na minha estante de conhecimento. Pago mensalmente quase R$ 300 para rever em dez meses matérias de três anos de Ensino Médio. E justamente hoje, em uma aula de literatura, o tema política e eleições 2010 foi abordado.
Na volta para a casa, vim pensando na revolta do professor para com o sistema e juntei sua argumentação com minhas constatações durante esses seis meses de cursinho. Depois de ter um diploma nas mãos, voltei praticamente para Ensino Médio a fim de reaprender todo aquele conteúdo que deveria ter sido fixado durante três anos na escola pública.
Junte esse questionamento àquela antiga constatação de que escola pública não presta, uma pitada de consciência eleitoral e política e duas colheres de revolta nacionalista e chegamos a uma bela conclusão: O que foi feito da política para mim e para meus amigos das classes das escolas “Brasil”, “Antonio de Queiroz” e “Perches Lordello”? Qual foi a política empregada pelo poder público que me beneficiou diretamente durante esses mais de 15 anos que passei nas carteiras escolares para tentar ser alguém na vida?
Infelizmente sou um filho legítimo do Brasil. Quinze anos de educação pública com qualidade ruim fruto de uma má administração pública e um processo de modificações no sistema que só falharam.
Um filho que cresceu com a educação pública em processo acelerado de apodrecimento; que tem que pagar um cursinho para poder competir com o mínimo de igualdade possível com os estudantes de escolas particulares, escolas que suprem toda a carência do sistema público a preços caríssimos.
É justamente nesta época do ano que candidatos batem no peito e se dizem os heróis da nação pelos feitos da educação ou se proclamam os messias de uma nova era para a rede pública de ensino. O que seus antecessores fizeram que eles vão aprimorar? Como vão resolver todos os problemas das escolas piores colocadas em pesquisas e avaliações de ensino promovidas pelos governos estaduais e federal?
É ridículo ter que pagar pela educação enquanto temos direito a ela. Infelizmente temos uma educação que mais cala que esclarece. Educação pública que prepara para a inércia do descontentamento e não para a lucidez do desenvolvimento.
Isso é visível até no mercado de trabalho. “Para que evoluir, para quê aprimorar o texto jornalístico, o conteúdo oferecido se o público não é mais leitor e sim consumidor de catástrofes da página de polícia e gols da área de esportes?” Essa foi uma das indagações que ouvi quando quis dar conteúdo para quem compra um jornal e tentar levar cultura e textos que façam as pessoas procurarem sair do marasmo intelectual que se escondem. Uso a cena como exemplo da situação.
Infelizmente algumas pessoas perderam tanto a esperança na educação que até formados e auto-intitulados “excelentes jornalistas” esqueceram que essa profissão não é um palco para ataques mesquinhos e individualistas; que jornalismo não é um meio para enaltecer seu ego ou um ponto central na orquestra dos textos vazios para o principal foco das atenções de uma elite; jornalismo é sim um meio de educar leitores, barrar a inércia da corrupção e da má vontade política e brigar por uma atenção maior para educação e outras áreas básicas que o poder público deixa a desejar.
Estamos numa democracia, e ninguém melhor que seus integrantes para reclamarem por melhoras em outubro. Hoje não há mais manifestações populares como antigamente. No lugar das revoltas do afetados pela má administração da verba pública, estão eleitores do Tiririca, dos cantores do KLB, da Mulher Melão, do Clodovil, do Frank Aguiar, e outros políticos corruptos. Os antigos revolucionários deram lugar para os filhos legítimos do Brasil.
É pra chorar...