Querido pai: você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você. Seria injusto eu dizer que a culpa é do noticiário da TV com o caso da Isabela. Afinal morávamos num barraco em um assentamento sem terra, me jogar da janela ali, no máximo me deixaria com o joelho ralado ao chegar no chão de terra batida.
No fundo, no fundo eu acho que é medo de lobisomens. Essa sua barba mal feita e o jeito que pega na enxada quando diz que vai defender uma nova terra em algum canto desse país me dá a clara sensação de que é capaz de matar qualquer um, mesmo sem ter caninos afiados.
Além disso, passei noites ouvindo seus suspiros e uivos prolongados e a mamãe sempre soltando alguns sons que davam a impressão de estar sendo devorada. Meus irmãozinhos me perguntavam o que estava acontecendo. Sempre estava muito escuro dentro do barraco que você fez para a gente dormir, mas dava para perceber que eles falavam assustados.
Ninguém nunca perguntou nada com medo de também ficar tão cansado e com uma cara tão feia como a mamãe ficava de manhã. O mau-humor dela também nos assustava, mas ela sempre nos bateu com um chinelo e não com fio de cobre. Mamãe sempre foi mais carinhosa. Agora que cresci entendo que meus pensamentos não estavam tão errados assim quando a ela ser “devorada”.
Compreendo que será difícil ler essas palavras, por isso estou tentando escrever da forma mais fácil possível. Se não fosse por mamãe e pelo incentivo dos meus doze irmãos, não teria chegado hoje na polícia militar. Estou começando no posto mais baixo. As garagens e as viaturas são numerosas e lavar todas me deixa com dores nas costas e a pele queimada do sol. O delegado desse distrito resolveu me ajudar quando viu que eu estava pedindo dinheiro na esquina do supermercado. Ele disse que meus olhos azuis e minha pele clara não deveriam estar ali daquele jeito.
Pode parecer que esse um ano que sai de casa é uma eternidade, mas para mim passou bem rápido. O caso da Isabela ainda nem foi resolvido, olha só como a saudade não pode ser tão grande assim.
Continuo meus estudos sempre. Hoje consigo pegar bastante livros na biblioteca que tem na escola onde vou. Não perco de vista o objetivo de chegar a comandar o esquadrão que vai enfrentar aquela enxada que você levanta para assustar quem entra na terra que nem sua é.
Me desculpe, papai, o psicólogo do batalhão me disse que esse medo é raiva reprimida e me sugeriu expressá-la escrevendo essa carta. Se você tivesse me dado aquela boneca Barbie quando eu tinha sete anos de idade e não tivesse me batido tanto quando me viu passando nos lábios o único batom de mamãe, não teria esse destino de hoje. Pelo menos evolui. Hoje moro em um abrigo e durmo em um colchão macio. Aqui eles me dão aparelho de barba para raspar os pelos que já começaram a crescer. Assim eu não vou assustar ninguém na rua. Mande lembranças para mamãe e diga a ela que ela não precisa mais sofrer, estou bem.
Em poucos dias acho que vou ir fazer uma visita. Não vou falar quando. Prefiro não te ver em casa. Peço também que não me procure. Ainda estou muito chateado com tudo o que fez e com a forma como fomos criados. Queria tanto ter uma casa para pintar de rosa e nesses 13 anos sempre morei no meio das galinhas. Quantas vezes ouvi que “agora nós vamos conseguir nosso terreno”?
Sabe pai, é injusto ver tanta criança por ai jogando vídeo-game e a gente não ter nem uma tomada em casa. Nosso vizinho sempre disse que a culpa era do governo. Hoje sei que aquela casa que você tem no condomínio fechado não é culpa do governo. Só acho que eu poderia ter sido criado num lugar melhor.
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