Daniel Piza, do Estado de S. Paulo
Não há eleição, não há crise nas bolsas, não há nada nestes dias que possa chamar mais atenção do que o centenário de morte de Machado de Assis. Quando eu era adolescente, ouvia das pessoas que os clássicos são chatos; logo, Machado de Assis, sendo clássico, era um chato. Mas agora ouço de muitas delas que redescobriram o mestre, que relendo suas obras sem os antolhos escolares o que saltou foi seu estilo, seu humor, sua filosofia. O Bruxo do Cosme Velho em pessoa não se furtaria a notar a ironia da cena: comemoram-se cem anos de sua morte, não de sua vida. Para um homem que no final da existência esperava a morte como um livramento, nada mais apropriado. Hoje são seus leitores que estão livres para ler seus livros, nos quais a morte é tão presente.
Muitas efemérides são tristes como os aniversários. Tristes?, perguntará o leitor. Sim, tristes. Porque em todos os aniversários há aquela obrigação de dar festa e chamar amigos e familiares, mesmo os amigos que já não são tão familiares e os familiares que nunca foram amigos. Já quem decide não dar festa causa toda sorte de especulação: "Ah, mas ele não parece bem mesmo, faz muito tempo que ando percebendo isso". O leitor perdoe a digressão, mas pode pôr a culpa no próprio Machado. O que eu queria dizer é que este seu aniversário não tem nada de triste, apesar de tantas meias-verdades ainda ditas e escritas sobre ele; não tem nada de triste porque é um aniversário em que o aniversariante é quem dá os presentes - os seus textos, que tantas e tantas pessoas andam lendo e relendo. Pode ver como se lançaram mais reedições deles do que edições sobre ele.
Ninguém, afinal, sabia o que ele era quando escrevia. Machado seguramente escrevia melhor do que falava. Falar, sobretudo falar em público, é uma espécie de riacho, cheio de pedras e desvios, por onde a idéia corre com dificuldade. Escrevendo, Machado era profundo e amplo como o mar; suas idéias iam e vinham com a elevação das marés. Parece que há cada vez mais gente se banhando nessas águas, e isso é bom. Mesmo que tenha sido um crítico da religião, a tal ponto que recusou padre no leito de morte, Machado batizou a língua brasileira, e com seus Bentos e Cubas e Quincas criou um espelho onde os brasileiros podem enxergar a si próprios.
Outro dia, porém, dobrando uma esquina, vi dois pombos conversando sobre a data machadiana. Conheço bem os arrulhos dessas criaturas urbanas, alimentadas a migalhas de pão que algum mendigo atira ao chão sujo da praça, o que as deixou acostumadas ao ioiô emocional dos humanos, ora tão piedosos, ora tão mesquinhos. Fiquei inclinado e escutei:
- Eles falam do Machado como se comessem migalhas - disse o da esquerda.
- Como assim? - perguntou o da direita.
- Eles só leram um livro ou outro, ou no máximo algum conto, e vivem citando as mesmas frases, como "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria" ou "Matamos o tempo; o tempo nos enterra". Nem se dão conta de que as frases são do Brás Cubas, não do Machado...
- É verdade. Eles ainda acham que ele é o Machadinho, o escritor tímido que não participava de controvérsia, o sujeito frágil que ficava em casa o dia inteiro tomando remédio e escrevendo sobre a vida que não vivia...
- Aí fazem essa festa toda, como se fosse um gesto de patriotismo!
O pombo da esquerda entrou num bueiro e deu algumas bicadas:
- Ele gostava de catar o mínimo e o escondido, de enfiar o nariz onde ninguém enfiava. Mas todo mundo finge que ele era bonzinho, que escrevia bonitinho. É o Machado em diminutivo, apequenado como convém aos homens e aos gafanhotos. Mal sabem eles como é difícil não ser convencional.
O pombo da direita corre de um menino que tenta pisá-lo:
- E ele criticava o brasileiro, que "nasceu com a bossa da ilegalidade"... Morreria de rir dessa politicalha de hoje. E morreria de chorar ao ver como está o seu Rio de Janeiro.
- Pelo menos teria um blog para a gente ler, pois o homem gostava de uma conversa textual, de prosear ausente. Certamente não seriam migalhas. Machado era um banquete, não tinha tempo para esmolas. E ele criticava o ser humano em geral, não só o brasileiro.
- "Qualquer um de nós teria organizado o mundo melhor do que saiu."
- Essa é boa! Ei, cuidado!
Os dois pombos saíram voando quando uma bicicleta passou e foram conversar num fio lá no alto. Segui meu caminho, meditando sobre aquela estranha conversa. Os pombos tinham razão: Machado pode estar sendo celebrado e lido como nunca antes, mas não combina com essa visão de mundo ingênua e otimista que domina a cena hoje em dia. Saber que 70% dos brasileiros acham que as escolas são boas o deixaria entre a galhofa e a melancolia. Essas mesmas escolas que ensinam que os clássicos são chatos e que Machado de Assis deve ser lido como uma modalidade de dever cívico. Mas, tudo bem, os adjetivos passam e os substantivos ficam. Machado é substantivo.
Boas noites!
Crônica publicada hoje no portal Estadão.com.br
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