sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Bons Dias!

Daniel Piza, do Estado de S. Paulo

Não há eleição, não há crise nas bolsas, não há nada nestes dias que possa chamar mais atenção do que o centenário de morte de Machado de Assis. Quando eu era adolescente, ouvia das pessoas que os clássicos são chatos; logo, Machado de Assis, sendo clássico, era um chato. Mas agora ouço de muitas delas que redescobriram o mestre, que relendo suas obras sem os antolhos escolares o que saltou foi seu estilo, seu humor, sua filosofia. O Bruxo do Cosme Velho em pessoa não se furtaria a notar a ironia da cena: comemoram-se cem anos de sua morte, não de sua vida. Para um homem que no final da existência esperava a morte como um livramento, nada mais apropriado. Hoje são seus leitores que estão livres para ler seus livros, nos quais a morte é tão presente.

Muitas efemérides são tristes como os aniversários. Tristes?, perguntará o leitor. Sim, tristes. Porque em todos os aniversários há aquela obrigação de dar festa e chamar amigos e familiares, mesmo os amigos que já não são tão familiares e os familiares que nunca foram amigos. Já quem decide não dar festa causa toda sorte de especulação: "Ah, mas ele não parece bem mesmo, faz muito tempo que ando percebendo isso". O leitor perdoe a digressão, mas pode pôr a culpa no próprio Machado. O que eu queria dizer é que este seu aniversário não tem nada de triste, apesar de tantas meias-verdades ainda ditas e escritas sobre ele; não tem nada de triste porque é um aniversário em que o aniversariante é quem dá os presentes - os seus textos, que tantas e tantas pessoas andam lendo e relendo. Pode ver como se lançaram mais reedições deles do que edições sobre ele.

Ninguém, afinal, sabia o que ele era quando escrevia. Machado seguramente escrevia melhor do que falava. Falar, sobretudo falar em público, é uma espécie de riacho, cheio de pedras e desvios, por onde a idéia corre com dificuldade. Escrevendo, Machado era profundo e amplo como o mar; suas idéias iam e vinham com a elevação das marés. Parece que há cada vez mais gente se banhando nessas águas, e isso é bom. Mesmo que tenha sido um crítico da religião, a tal ponto que recusou padre no leito de morte, Machado batizou a língua brasileira, e com seus Bentos e Cubas e Quincas criou um espelho onde os brasileiros podem enxergar a si próprios.

Outro dia, porém, dobrando uma esquina, vi dois pombos conversando sobre a data machadiana. Conheço bem os arrulhos dessas criaturas urbanas, alimentadas a migalhas de pão que algum mendigo atira ao chão sujo da praça, o que as deixou acostumadas ao ioiô emocional dos humanos, ora tão piedosos, ora tão mesquinhos. Fiquei inclinado e escutei:

- Eles falam do Machado como se comessem migalhas - disse o da esquerda.

- Como assim? - perguntou o da direita.

- Eles só leram um livro ou outro, ou no máximo algum conto, e vivem citando as mesmas frases, como "Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria" ou "Matamos o tempo; o tempo nos enterra". Nem se dão conta de que as frases são do Brás Cubas, não do Machado...

- É verdade. Eles ainda acham que ele é o Machadinho, o escritor tímido que não participava de controvérsia, o sujeito frágil que ficava em casa o dia inteiro tomando remédio e escrevendo sobre a vida que não vivia...

- Aí fazem essa festa toda, como se fosse um gesto de patriotismo!

O pombo da esquerda entrou num bueiro e deu algumas bicadas:

- Ele gostava de catar o mínimo e o escondido, de enfiar o nariz onde ninguém enfiava. Mas todo mundo finge que ele era bonzinho, que escrevia bonitinho. É o Machado em diminutivo, apequenado como convém aos homens e aos gafanhotos. Mal sabem eles como é difícil não ser convencional.

O pombo da direita corre de um menino que tenta pisá-lo:

- E ele criticava o brasileiro, que "nasceu com a bossa da ilegalidade"... Morreria de rir dessa politicalha de hoje. E morreria de chorar ao ver como está o seu Rio de Janeiro.

- Pelo menos teria um blog para a gente ler, pois o homem gostava de uma conversa textual, de prosear ausente. Certamente não seriam migalhas. Machado era um banquete, não tinha tempo para esmolas. E ele criticava o ser humano em geral, não só o brasileiro.

- "Qualquer um de nós teria organizado o mundo melhor do que saiu."

- Essa é boa! Ei, cuidado!

Os dois pombos saíram voando quando uma bicicleta passou e foram conversar num fio lá no alto. Segui meu caminho, meditando sobre aquela estranha conversa. Os pombos tinham razão: Machado pode estar sendo celebrado e lido como nunca antes, mas não combina com essa visão de mundo ingênua e otimista que domina a cena hoje em dia. Saber que 70% dos brasileiros acham que as escolas são boas o deixaria entre a galhofa e a melancolia. Essas mesmas escolas que ensinam que os clássicos são chatos e que Machado de Assis deve ser lido como uma modalidade de dever cívico. Mas, tudo bem, os adjetivos passam e os substantivos ficam. Machado é substantivo.

Boas noites!



Crônica publicada hoje no portal Estadão.com.br

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