quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Vamos pensar um pouco em como lemos uma entrevista? Vamos!!!

Em geral, as entrevistas dão muito mais voz ao entrevistados que as simples notícias e reportagens. Estas só citam suas fontes (os profissionais escolhidos) para confirmar, analisar ou, embora com menos frequência, contrapor a ideia dominante do texto. ", disse"; ", afirmou"; ", assegura"; ", explica". Toda fala de uma fonte, geralmente é acompanhada de um verbo que dá o tom e enfatiza a importância daquela declaração para o texto.

Nas entrevistas, contudo, o tom é dado de uma forma totalmente diferente: ele está na apresentação do texto ou na formulação das perguntas. Geralmente os primeiros parágrafos servem tanto para apresentar quem é o entrevistado, como também para dar uma ideia geral do pensamento, ideia ou ideal que esse profissional segue ou expressa. Já as perguntas mostram o outro lado da moeda: o do jornalista que conduz a entrevista ou do veículo no qual o diálogo é publicado. É possível ver, por exemplo, a preparação do profissional ou a disposição dele de obter informações que podem beneficiar ou até "prejudicar" o entrevistado.

A entrevista com o presidente da Usiminas, o engenheiro metalúrgico Sergio Leite, publicada hoje (31/10)  no Correio Brasiliense, serve de exemplo para observar o comportamento do jornalista. Embora não seja explicitada a condição imposta ao diálogo, em três momentos o entrevistador perde importantes pontos que poderiam contradizer o entrevistado e até o programa econômico do próximo governo. É bom salientar que por "condição imposta ao diálogo" quero dizer que a entrevista pode ter sido comprada pela Usiminas para destacar sua magnitude e capacidade de recuperação; pode ter sido um "brinde" ao anunciante do jornal; pode também ser uma ressalva à importância de se olhar para a indústria e à infraestrutura do Brasil num cenário no qual Paulo Guedes critica a indústria brasileira; pode também ter sido cortada pelo editor chefe do jornal a fim de garantir uma boa relação com a empresa; entre outras mil possibilidades.

Sendo assim, quando lemos uma entrevista, devemos ficar atentos à formulação das perguntas. Elas podem só ser um subsídio para conduzir o que o entrevistado quer falar ou um confronto intelectual para trazer a transparência e mais informações para a conversa. Olha só esses exemplos retirados da entrevista selecionada:

Correio Brasiliense (CB): Quais são os problemas centrais que o novo governo deve atacar?
Sergio Leite (SL): Nós temos problemas sérios no campo da saúde, da educação e da infraestrutura. Enfrentar os desafios nessas três áreas passa por uma grande capacidade de gestão e de investimentos. Na parte de gestão, precisamos fazer uma reforma profunda no Estado brasileiro e trazê-lo para a dimensão que ele precisa, com ajustes das contas públicas. É preciso essencialmente voltar ao superavit primário e começar um processo de regularização das contas públicas. Esse processo deve levar em consideração também a reforma da Previdência e a reforma fiscal. Reforço: neste momento, devemos reduzir ao máximo os gastos com a máquina governamental.

Leite diz que precisamos de gestão e investimentos nas áreas de saúde, educação e infraestrutura, certo? Ele diz que o caminho é regular as contas da máquina pública, levando em consideração as reformas fiscal e da Previdência. Ele não diz, contudo, sobre como os investimentos poderiam ser feitos. Aliás, a pergunta que fica é: "Como poderiam ser feitos investimentos na educação e saúde para acabar com o problema nessas áreas, se há um limite para gastos do governo (a PEC do Teto de Gastos)?" Ele aponta e explica um caminho (da gestão) e só menciona o outro (dos investimentos). Frente à essa resposta vaga, o que o repórter pergunta na sequência? Veja: "Os problemas são, de fato, monumentais. O Brasil vai conseguir sair rapidamente da crise?" e "O senhor chegou a se encontrar com o presidente eleito, Jair Bolsonaro?". Em nenhuma das duas respostas ele fala sobre como poderiam ser feitos os investimentos e o tema passa batido.

Outro ponto no qual o jornalista perde uma oportunidade incrível:

CB: O maior competidor da indústria brasileira do aço é a China, certo?SL: Sim, mas na China nós não competimos contra empresas, mas contra um Estado. Trata-se de um Estado que não é uma economia de mercado, que não remunera adequadamente sua mão de obra, que não remunera adequadamente o capital e em que a prática do subsídio está presente na indústria. Ou seja, é uma concorrência desleal. Esse posicionamento da China gerou reação dos Estados Unidos. Por sua vez, a decisão protecionista do presidente Trump desencadeou uma série de reações na Europa, África e Ásia. A única região que não aplicou medidas para fazer frente a essa decisão de Trump foi a América Latina. Por isso, eu digo que é preciso fazer uma reflexão: faz sentido o Brasil ser um país liberal nas suas relações comerciais num mundo notadamente protecionista?

Reparem na última declaração de Leite. O jornalista poderia pegar essa declaração como um gancho e questionar: "Por que é preciso avaliar se faz sentido ser um país liberal?"; ou "Qual o risco para o Brasil de adotar uma política liberal frente a um cenário internacional protecionista?"; ou "Quais os entraves que uma economia liberal enfrentaria numa concorrência internacional protecionista?". O que o jornalista pergunta? Isso aqui: "Apesar da crise dos últimos anos, a Usiminas vem de uma série de resultados financeiros sólidos, voltando inclusive a operar no azul. Como isso foi possível?", tirando o foco do cenário internacional e do programa liberal de Paulo Guedes e voltando a focar no quão maravilhosa é a capacidade de Sergio Leite de reerguer a Usiminas. Esse tipo de fuga do assunto é totalmente estratégico, afinal, a resposta poderia comprometer as relações da Usiminas com o governo fascista ou comprometer o Correio Brasiliense e transformá-lo na próxima Folha de S.Paulo.

Para acabar, um último jogo de pergunta e resposta mal aproveitado:

CB: A Usiminas é um caso especial, já que ela tem acionistas japoneses e ítalo-argentinos e uma gestão brasileira. Como é trabalhar com múltiplas nacionalidades?SL: É um desafio e uma experiência extraordinária. Temos na Usiminas três forças: os brasileiros, que somam a maior parte da força de trabalho, os ítalo-argentinos e os japoneses. Tenho uma relação sólida com todos os grupos, porque o trabalho foi sempre o de buscar integração e equilíbrio. Atravessamos um período grande de conflito acionário, mas conseguimos unir as forças dentro da empresa. No “Grupo dos 10”, tenho profissionais que representam o acionista ítalo-argentino, outros que representam o acionista japonês, e os que fazem parte da força de trabalho brasileira. Durante mais de um ano e meio, conseguimos trabalhar de forma integrada, unida e pacífica. Conseguimos inclusive selar um novo acordo de acionistas, que trouxe a paz. Hoje, vivemos um cenário muito positivo. Estamos todos de mãos dadas trabalhando para construir o presente e o futuro da Usiminas.
   
Qual é a questão aqui? Claro: "Como ficariam as relações da Usiminas com a Argentina, se Paulo Guedes já deixou claro que pode não dar preferência aos países vizinhos e ao MercoSul  para priorizar as relações com os Estados Unidos?". O jornalista entra nesse ponto? Claro que não. Ele, na verdade, até faz uma pergunta que poderia levar a esse questionamento das relações com os países sul americanos, mas ela é mais focada na gestão da Usiminas: "Como está o plano de investimentos da empresa? Diante da melhoria dos resultados, os planos foram ampliados?" e o assunto morre.

Com esses três assuntos negligenciados é possível reforçar que as entrevistas mostram, e muito, a capacidade ou disposição que o veículo de comunicação tem para o diálogo. Como comentei anteriormente, as entrevistas podem ser só mais um negócio da área comercial do jornal, porém, se é assim, ela não cumpre com seu papel de questionar e esclarecer pontos importantes do cenário politico e econômico. Sem isso, as entrevistas se resumem a "puxar saco" da empresa, profissional ou anunciante.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

O grito de liberdade da imprensa de direita conservadora e hipócrita

O editorial do Jornal de Piracicaba, de hoje, chocou algumas pessoas, pelo menos aquelas com as quais tenho contato no Facebook. Uma amiga veio perguntar se estava sabendo do ocorrido e logo estava eu lá lendo o texto.

Ele pareceu um grito de libertação do jornal. Um grito de quem teve que andar na linha durante muito tempo, respeitando princípios básicos e fundamentais do jornalismo. Com professores da área e outros jornalistas formados conscientes do que realmente é parcialidade, objetividade e, acima de tudo, o que é jornalismo, não só o JP, mas outros jornais do interior tiveram que minimamente respeitar alguns princípios. Nem todos, na verdade, vide que a Gazeta de Limeira, por exemplo, embora respeite algumas questões, pouco faz para avançar em um debate sério com os seus leitores ao priorizar os anúncios ao espaço para textos mais complexos e profundos. Isso só restringindo a crítica aos jornais porque se formos falar de programas sensacionalistas da TV, aí a coisa desanda sem nem precisar digitar a primeira letra do texto.

Esse grito de liberdade do JP é o mesmo que outros setores da sociedade deram ao poder assumir a homofobia, misoginia e racismo por tanto tempo preso na garganta por conta do avanço das minorias e do "politicamente correto". Tivemos, sim, nós, a minoria (prazer, faço parte dela), alguns avanços nos últimos anos, mas o sentimento que fica é que tudo vai retroceder ou estancar, pelo menos do que depende do apoio Federal às nossas causas - e pelo jeito no Estadual e Municipal também. Somos nós por nós mesmos agora e o editorial prova isso.

Fui atrás do editorial porque fiquei curioso com o buchicho que comentei lá no começo do texto, mas nada me surpreendeu ver a posição que o jornal tomou. O interior, em massa, optou pelo fascismo e várias máscaras caíram. É uma pena, mas pra eles é um alívio pra poder ter a "liberdade de expressão" preconceituosa que sempre quiseram.

Esse texto era um comentário na publicação de um ex-professor, o Paulo Roberto Botão. Um professor com quem tive meus arranca rabos na época da faculdade por conta do amor dele ao futebol e o meu ódio ao assunto, mas um professor que se mostrou consciente de seu papel no jornalismo e na formação de seus alunos. Menciono o professor aqui porque o editorial fez questão de atacá-lo como coordenador do curso de jornalismo da Unimep, comprovando, mais uma vez, que o pensamento de esqueda incomoda, ou melhor, incomoda a preocupação com uma comunicação justa e regida por princípios que respeitam a coletividade e querem a melhora da condição de vida do povo pela informação. Afinal, pra quê focar no povo se o que mais interessa esses jornais é a quantidade de anúncios, como faz a Gazeta de Limeira e tantos outros jornais por ai?

Pra quem tiver curiosidade, vejam como pensa o interior: http://www.jornaldepiracicaba.com.br/brasil-em-festa-como-nunca-antes-se-viu/

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Por que Bolsonaro conseguiu 46% dos votos no primeiro turno?

O resultado do primeiro turno da eleição deste ano foi preocupante, porém, mais que compreensível. Contra todos os discursos de alerta sobre o Bolsonaro, as pessoas estão votando no candidato por acreditar que ele é a melhor opção para acabar com a CORRUPÇÃO no Brasil. Existe, infelizmente, aqueles que compactuam com outras ideias do candidato, principalmente as de misoginia, racismo e homofobia, porém, não é possível afirmar que os 46% de eleitores de ontem são homofóbicos, misóginos e racistas - pelo menos prefiro acreditar que não.

A questão é a seguinte: como disse, é compreensível que as pessoas estejam votando no Bolsonaro com a esperança de acabar com a corrupção e a violência no Brasil, mas qual é o custo disso? Bolsonaro não propôs uma reforma política - na entrevista no Jornal Nacional, por exemplo, ele disse que todos os grandes gastos prescindiriam de assinatura e aval dele (isso é sufiente?); na questão da violência, "bandido bom é bandido morto", a solução seria concentrar traficantes na favela e descer bala neles, porém, e os inocentes naquele lugar? Se você mora em uma região não violenta e não dominada pelo tráfico, é fácil apoiar essa medida, não é? Quando o candidato foi questionado sobre os inocentes que estariam na favela, ele disse que retiraria eles de lá antes da ação; quando questionado mais uma vez sobre a morte de inocentes por balas perdidas e a impossibilidade de simplesmente "tirar os inocentes da linha de fogo", ele não respondeu nada.

Além desses dois pontos principais da campanha, que convenceu 46% dos eleitores, o problema central é o preço e o que o candidato traz consigo em um possível mandato. Ele promete empregos transformando o país em uma economia liberal, fazendo coro e dando ouvidos apenas aos empresários com os quais ele conversou. O preço disso é a perda de inúmeros direitos trabalhistas arduamente conquistados em uma economia periférica e refém de uma política econômica internacional que apenas beneficia o aumento do lucro por meio do uso de mão de obra barata (ou seja, sem direitos) em países subdesenvolvidos - isso significa que vamos continuar (e retroceder) no caminho da autonomia econômica.

Por fim e o que mais preocupa a esquerda, é a esteira, o véu dessa noiva conservadora, ou seja, todo o discurso de ódio contra negros, mulheres e homossexuais, além de uma provável ditadura militar, que vem junto com esse combate à corrupção e à violência. Esse discurso é propagado pela ignorância. Ele fala muito do "kit gay" e que não quer que um pai de família chegue em casa e veja o filho de 6 anos brincando com uma boneca - percebe a ignorância nisso? Além de deturpar um projeto de conscientização sobre a sexualidade (que não quer incentivar ninguém a transar ainda na infância, MUITO menos "virar gay"), ele propaga um preconceito e reforça a imagem da "família tradicional" com valores ultraconservadores enraizados.

Quanto à ditadura militar, pra ele é passado e não se deve mexer nisso - veja a entrevista do candidato no RodaViva. Dívida com negros? Passado. Tudo é passado e precisamos olhar para o momento atual. O problema, porém, é que esse passado continua enterrado e, no lugar de vir à tona para conscientizar a população a não repetir erros do passado, Bolsonaro prefere manter enterrado e manter o povo na ignorância para aparentemente deixar o caminho aberto a um novo controle militar na política brasileira. Fazer coro com esse candidato sobre a Ditadura Militar e apoiar essas ideias só ressalva o tamanho da ignorância, da falta de conhecimento sobre História e o poder e eficiência que um projeto como "Escola Sem Partido" tem na conjuntura brasileira.

Para terminar, um recado: esquerda não é só PT; esquerda não é corrupção do PT. Esquerda política e econômica é uma linha de pensamento e de ação que favorece a vida do trabalhador e da sociedade. É incoerente e extremamente inocente acreditar que o liberalismo e o capitalismo vão te ajudar a colher frutos bons no futuro. Isso é uma ilusão: pode até aumentar o emprego, mas o custo disso vai ser alto demais e aumentar a desigualdade de renda existente no Brasil (ou seja, 1% vai ficar ainda mais rico e o resto vai se fuder mais ainda).

Para terminar (2): se você votou no Bolsonaro e eu, um amigo ou qualquer gay, mulher ou negro sofrer algum por ódio na rua no governo desse fascista, eu vou fazer questão de ir até onde você estiver, olhar nos seus olhos e simplesmente dizer: "Esse sangue também está nas suas mãos!"

terça-feira, 15 de maio de 2018

"Tchau, mãe!": 'Sobre morar em São Paulo' ou 'Sobre morar longe do "Boa Noite"'


Morar em uma cidade diferente daquela que você nasceu e longe de toda sua família é, sem dúvida, uma experiência interessante. Claro que há alguns pontos negativos, como as saudades da casa da mãe ou pelo menos de uma proximidade dela que dispense uma viagem de 2h ou mais. Também tem a questão da vida adulta e a necessidade de administrar a geladeira de forma consistente para não faltar nada nos últimos dias do mês. Ô saudades da geladeira mágica que as coisas brotavam sem precisar fazer muito esforço!

Apesar de os poucos pontos negativos serem bem convincentes do porquê não voltar para a casa dos pais, a vida com asas e em locais distintos e distantes tem suas vantagens que fazem as saudades e as necessidades compensarem. Há oito anos sai da casa de minha mãe. Morei lá até 2010, quando tinha 24 anos. Naquele ano fiz cursinho e consegui ser aprovado na Unicamp. O primeiro destino, portanto, foi Campinas, interior de São Paulo. Lá morei por seis anos em três diferentes locais da cidade. Em 2016, desempregado e sem muitas perspectivas de algo promissor nas minhas áreas de formação naquela cidade, resolvi voltar a estudar para o vestibular e coloquei como meta o curso de Letras da USP, aqui na capital do estado.

De forma geral, acredito que temos duas experiências distintas ao morar sozinho e distante da família, em outra cidade: uma delas é a autodescoberta e a outra a descoberta da cidade. As duas poderiam dar uma terceira experiência que seria a descoberta de um ser em um espaço urbano, em uma sociedade – essa terceira questão, no entanto, está presente na primeira. A segunda, será tratada em outros textos.

Um mapa para si mesmo

A autodescoberta é, em resumo, conhecer suas limitações, habilidades e capacidade de adaptação à rotina ou aos imprevistos dessa rotina. É ter a capacidade de se virar nos 30, literalmente. Sem mãe, sem irmã, sem primos e, durante algum tempo, sem amigos. As habilidades sociais precisam se desenvolver e a dependência do próximo parece diminuir pouco há pouco. Um pai que troca a resistência do chuveiro; o amigo que topa ficar sem fazer nada na calçada de sua casa; uma loja, pequena como uma papelaria ou tão grande quanto um hipermercado, na qual você sabe que pode confiar no produto e, principalmente, sabe que vai encontrar o que precisa e o local onde ele está na prateleira.

É necessário dar alguns pulos, corridas ou cliques no YouTube para aprender a fazer alguma coisa que você nunca precisou até aquele momento. Ninguém te ensina a desentupir uma privada; a como evitar mosquitos de fruta na cozinha; as vezes há pessoas que sequer sabem trocar uma lâmpada e minimamente conhece a diferença entre água sanitária e limpa-vidros.

Sentimental e psicologicamente, o autoconhecer-se pode ser ainda mais complicado. Sem ter com quem conversar pessoalmente, os diálogos no WhatsApp vão perdendo o calor e o tom das palavras “palpáveis”. Seu amigo ou amiga, irmã, mãe ou qualquer pessoa não está ali para ver sua expressão de falsa alegria e perguntar o que está acontecendo; se pode ajudar. Obviamente não dá para deixar de considerar que algumas amizades parecem não precisar de rostos e presenças 100% do tempo, o sexto sentido e o conhecimento sobre a pessoa ditam o ângulo da interpretação de palavras na tela do celular. Essa falta gera, sim, um sentimento de vazio e sempre levanta a dúvida sobre a real necessidade de estar tão longe de um “Boa noite!” todos os dias.

É triste, mas esta tristeza é controlável. Contudo, ela só te dá as rédeas desse controle após algumas rasteiras da vida ou de algumas viagens recheadas de nostalgia. Quando isso acontece é como se a borboleta realmente saísse de um casulo – não consigo ver de outra forma. Ali, protegido e em desenvolvimento, o mundo real parece distante e isolado. É confortável, uma bolha. Voar, acaba sendo um trauma ou literalmente uma libertação. Se ver capaz de ter uma vida longe das asas dos pais te obriga a se enxergar como autossuficiente e, num estágio mais adiante, um membro de uma sociedade capaz de usar o espaço, real ou virtual, para socializar, idealizar e talvez transformar.

O ambiente de trabalho acaba suprindo algumas dessas necessidades, principalmente a relacionada às amizades. Além de permitir conhecer novas pessoas, é no ambiente de trabalho que, no fim das contas, você se ambienta melhor. Ali temos contato com as pessoas que realmente moram na nova cidade. Ouvimos histórias e dicas de lugares para ir; problemas nos transportes e deficiências da cidade, especialmente uma tão grande quanto São Paulo; vemos que as realidades em alguns lugares são realmente incomparáveis com a bolha na qual vivemos durante muito tempo. Histórias de pais que abusavam de filhas, e essa filha nunca perde o sorriso do rosto e o rebolado do samba apesar de as pedras do caminho dela terem sido e serem muito mais pesadas que qualquer uma que você já viu. É no ambiente de trabalho que ouvimos o sotaque local, apesar de repararem mais no seu no que no deles mesmos.

Ainda sobre trabalho, ilusões podem ocorrer. Achar, por exemplo, que São Paulo é a terra do trabalho é um mero engano. Pensar que talvez seja a cidade na qual será possível trabalhar na própria área, como jornalismo ou economia (no meu caso), é, talvez, ter pouco conhecimento sobre a própria área ou parece ser um caso de “acreditar demais na própria capacidade” - ou se deixar levar por pessoas que fazem você não acreditar nisso. Não pode haver engano. Nesta hora, em uma cidade movida pela meritocracia e pelas indicações, ou você mantém o foco em trabalhar no que quer e gosta, independente da quantidade de negativas ou empresas que sequer respondem sua candidatura, ou então você se adapta à realidade e aceita o primeiro emprego que aparece depois de meses de procura. Os boletos são reais e não aparecem só no final do filme, desculpe o spoiler.

A insistência neste objetivo pode cansar, pode entristecer, pode te fazer perder a crença na sua própria capacidade. Esses efeitos negativos, no entanto, também são controláveis. Se adaptar não é ruim e pode, na verdade, ser uma ótima estratégia para conseguir os tão necessários contatos. Talvez um emprego de atendente em um callcenter pode te dar aquelas amizades já comentadas e, em um futuro não muito distante, elas serem as indicações que você precisava. Um emprego fora da área, além disso, pode ser uma oportunidade para começar mais uma vez e não entrar pela porta da frente, mas pela entrada de serviço. As experiências até o momento, me fizeram crer que talvez essa questão não seja tão factível. Tenho a atual impressão que uma experiência em um callcenter, especialmente se for em uma empresa pouco reconhecida por sua capacidade de gerir pessoas, pode, na verdade, manchar oportunidades mais ambiciosas. Se não mancham, acabam por estender o caminho, ao invés de encurta-lo.

Essa questão do trabalho, no entanto, vai ficar para um dos próximos textos sobre as reflexões acerca de morar em São Paulo. Até lá... =)

sábado, 21 de abril de 2018

A primeira visita ao MASP, provavelmente a gente nunca esquece


Uma das minhas maiores vergonhas, aos 30 anos de idade, era nunca ter visitado o Museu de Artes de São Paulo (MASP). Quando tinha tempo, não tinha dinheiro por estar desempregado; quando tinha dinheiro, o inverso.

Sempre gostei muito de visitar museus. Como turista, apesar das poucas e limitadas viagens, sempre tentei ir um aqui e outro lá para ver o quanto da história local eles guardavam. Em Limeira (SP), trabalhei durante um tempo em um prédio que brigava o museu, a escola de artes municipais e a biblioteca da cidade. Apesar do acervo limitado e a falta de atenção do Executivo para com as peças que fazem parte da história da cidade, as obras estavam lá, sob os cuidados de um ou dois funcionários que realmente entendiam a importância de guardar alguns elementos da história.
Em outras viagens, aquelas com a família para a praia ou em viagens sozinhos, conheci outros museus com acervos sobre a história local. Em Pedreira (interior de SP), Santos e Itanhaém (litoral SP) e Penedo (AL), cada um a seu modo e determinado pela sua história, esses museus eram tão importantes para suas cidades quanto o de Limeira, porém, também me lembro de ter a mesma impressão de carência de cuidados por parte das instituições públicas.

O primeiro museu realmente grande e “suntuoso” que conheci foi o Museu de História Natural de Nova York. Em 2013, ganhei um concurso cultural da Livraria Cultura e pude andar pelos corredores entre animais empalhados, representações de ossos de dinossauros, peças de vestuário, instrumentos de trabalho e tantos outros itens guardados naquele lugar. Naquele dia fiz uma viagem dentro de outra.

O Museu de História Natural não é algo para simplesmente visitar em uma manhã, como havíamos planejado (eu e minha irmã). Ele requer praticamente um dia inteiro se você pensa em cumprir com toda a proposta de aprendizagem que o local te oferece. São inúmeras e (quase) incontáveis informações sobre economia, biologia, sociologia, antropologia e tantas outras áreas do conhecimento, inclusive astronomia. Cada peça continha sua descrição e explicações contundentes sobre a importância daquele algo exposto dentro de quatro paredes.

Com um cronograma apertado, passamos pelo Museu de História Natural apenas como turistas apressados para cumprir o cronograma. Embora não tenhamos agilizado os passos para ver tudo e cumprir com o tempo previsto, não conseguimos, nem de longe, aproveitar todas as informações e exposições que o museu reúne. Lembro de ter ficado com inveja de alguns adolescentes que vi andando por lá com caderno e caneta nas mãos. Motivo pela curiosidade até parei um e perguntei o que eles estavam fazendo. A menina me disse que era uma tarefa da escola. Não lembro se ela entrou em detalhes sobre essa tarefa, mas achei uma forma excepcional de ensinar e aprender com peças que tornam a história praticamente viva ali diante dos olhos.

O MASP

Na experiência com o MASP resolvi fazer diferente daquela que tive até então como turista em Nova York e até em minha própria cidade natal. Com tempo, mas sem dinheiro, aproveitei que o museu tem entrada gratuita de terça-feira e me programei para passar a tarde por lá. Ao pesquisar no Google algumas informações sobre o MASP, vi que a média de tempo que os visitantes ficam no local era de 1h a 2h. Pouco tempo, portanto, uma tarde bastaria e realmente bastou.

Reservei a terça-feira, dia 3 de abril, para a visita. A motivação para ir agora e não antes foi pelos estudos do Modernismo brasileiro da década de 1920. Esse é o tema da disciplina de Literatura Brasileira I, do curso de Letras na USP. A professora já havia abordado algumas características de obras e movimentos de vanguarda europeus e brasileiro e estava começando a apresentar a semana de 1922 nas aulas. Além das aulas expositivas, duas leituras indicadas também colaboraram para a decisão: um capítulo do livro de Peter Bürger, “A teoria da vanguarda”’; e o artigo de Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Esses dois textos fizeram parte das discussões sobre o conceito de arte e as modificações pela qual ela passou ao longo do tempo até as primeiras décadas do século XX no Brasil.

Benjamin, por exemplo, trata em seu texto sobre a aura das obras de arte. Em suma, segundo ele, aura “É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.”[1] Para além de uma definição sumária, o conceito envolve aquela aura, quase divina, que as obras têm. Sendo mais prático: é aquele ficar-de-queixo-caído quando nos deparamos com algo que mexe com os sentidos e nos surpreende pela sua beleza e singularidade. É o ficar chocado frente a algo glorioso. Enfim... há diversas definições que acredito que apenas a real experiência consegue definir com quase clareza.

Além disso tudo, na segunda-feira antes de minha visita a professora havia comentado sobre Aleijadinho[2] e a importância que os modernistas brasileiros viram na sua obra. O MASP estava com uma exposição justamente sobre nosso artista e a professora fez essa indicação de visita. Ok, vamos lá então conferir.

“Imagens do Alijadinho”

Todas trabalhadas em madeira, as exposição das “Imagens doAlijadinho” é um mergulho sobre a religião. Confesso que, apesar de só ter uma formação religiosa, mas não exercê-la, a exposição se restringiu apenas à apreciação das obras e a visão a composição do artista. Por ser leigo em artes, tentei esforçar minha visão para além daquilo que estava exposto à minha frente. Neste sentido, consegui observar alguns aspectos interessantes das imagens, mas fiquei profundamente incomodado com outras informações.
Exposição "Imagens do Aleijadinho", no MASP (Foto de divulgação)


Cada imagem ali exposta tinha seu nome e a época em que fora feita. Eram representações de diversos santos que faziam parte do imaginário e da religião mineira do século XVIII. Algumas realmente lindas, como a Nossa Senhora das Dores, feita entre 1791 e 1812, o São Francisco de Assis (século XVIII) e a Santa Ana Mestra (1791-1812). Ao olhar essas obras de perto, dá para ver, aqui e ali, algumas “rachuras” (acho que posso dizer assim) do entalhe da madeira.
Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"Nossa Senhora das Dores" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)

A pintura de cada uma delas também é algo muito bonito de se admirar. Enquanto algumas parecem ter recebido apenas uma camada de verniz (como o São Francisco de Assis); outras são ricas em detalhes nas estampas dos vestidos e letras no livro de Santa Ana Mestra.

Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"Santa Ana Mestra" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)

Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
Detalhe do livro de "Santa Ana Mestra" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)
De toda a exposição, contudo, o que mais me chamou a atenção foram os proprietários das obras. Isso foi algo que sempre me incomodou nas artes e não é tanto pelo caráter comercial da composição de algumas obras (quase como a reprodutibilidade criticada por Benjamin). Há obras totalmente comerciais, mas que mantém o artista presente ali em cada traço, cor e composição. O que me incomoda, de verdade, é saber que algumas estátuas do Aleijadinho, como as representações de São Manoel, de Nossa Senhora da Conceição, São Francisco de Assis, entre outras, pertencem a alguma Pessoa Física (com CPF e muito dinheiro para comprar a obra) e não à sociedade e à cidade na qual a obra foi feita. Essa é uma discussão mais batida que limão com cachaça e açúcar, mas da qual eu não consigo me isentar. São obras lindas que ficam na estante de alguém. De vez em quando saem dessa prateleira para compor uma exposição aqui e acolá, mas que são “propriedade” de alguém. Bom... obras de arte são patrimônio e entram até nos balanços de grandes empresas, então é uma discussão que já nasce morta, infelizmente.

Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"São Francisco de Assis" (século XVIII), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)

Acervo em transformação

Depois de passar pelo primeiro andar, onde está Aleijadinho, parti para a exposição de obras da coleção do museu. A exposição “Acervo emtransformação” realmente me impressionou logo de cara pela forma como as obras estão expostas. Elas estão ali, a poucos centímetros da sua respiração e, vale dizer, podem sofrer danos se você respirar perto demais ou quiser colocar o dedo indicador na tela! Muitas pinturas são emolduradas com vidro, porém, várias não. Há uma fita no chão que indica a distância que você precisa manter do quadro, mas é uma distância realmente minúscula. Vi um adolescente quase colocando o dedo em uma obra e por um segundo senti o que é um princípio de infarto.
Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
Obras do "Acervo em Transformação" nos seus cavaletes de cristal. Quadro de Monet em destaque. (Foto de Alex Contin)

Segundo o MASP, o “Acervo em transformação” retoma os cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi e têm o objetivo de realmente aproximar o público das obras:

O retorno dos cavaletes não é um gesto nostálgico ou fetichista em relação a uma expografia icônica, mas deve ser compreendido como uma revisão do programa museológico de Lina Bo Bardi com suas contribuições espaciais e conceituais. A dimensão política de suas propostas é sugerida pela galeria aberta, transparente, fluida e permeável, que oferece múltiplas possibilidades de acesso e leitura, elimina hierarquias, roteiros predeterminados e desafia narrativas canônicas da história da arte. O gesto de retirar as pinturas da parede e colocá-las nos cavaletes aponta para a dessacralização das obras, tornando-as mais familiares ao público. Ainda, por outro lado, as legendas informativas colocadas no verso das obras possibilita um primeiro encontro com elas livre de contextualizações da história da arte. Nesse sentido, a experiência do museu torna-se mais humanizada, plural e democrática.[3]

Achei realmente incrível essa proposta de aproximação. Ter as obras tão próximo de nós, público, permite observar os traços, as cores, as texturas e os movimentos dos pinceis dos artistas. Em algumas obras, como “A canoa sobre Epte”, pintada por Monet por volta de 1890, parece ser importante o fato de você poder ver como ele pintou a água e de que forma usou tanto suas pinceladas como suas cores para fazer o reflexo na água. Em outras obras, como as de Picasso, a mesma coisa acontece. Sendo assim, essa proximidade permite contemplar muito mais que apenas a imagem.
Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
"A canos sobre Epte" (cerca de 1890), de Monet (Foto de Alex Contin)

Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
Detalhe da "A canos sobre Epte" (cerca de 1890), de Monet (Foto de Alex Contin)
 Abro mão de ficar falando sobre os artistas e suas obras (até porque reconheço minha ignorância sobre isso) para me focar em apenas um. Como as obras estão expostas em ordem cronológica, resolvi fazer meu próprio zigue-zague respeitando essa ordem. Contudo, ao andar de uma obra até a outra da mesma fila, ou ao trocar de fila, meus olhos eram atraídos por duas pinturas enormes e lindas, quase lá no final do salão. Quanto mais perto chegava, mais curioso ficava para observar as duas obras e tentar entender o que o artista queria me mostrar. A uma fila de distância, abandonei as demais obras que seguiriam meu caminho para finalmente encarar aqueles dois monstros.

A primeira obra, a esquerda, um grupo de pessoas passava a ideia de uma família, mas uma família realmente pobre. Suas roupas praticamente de trapos e as expressões de sofrimento em uma ilustração nem um pouco “realista” (com os traços bonitinhos de um autorretrato, por exemplo), passaram uma noção de realidade crua e muito cruel. Na obra da esquerda, tive a impressão de ver praticamente a mesma família retratada ao lado, como se fossem dois momentos de uma vida seca. Nessa segunda obra a família chorava. Não eram lágrimas azuis, redondinhas e perfeitas, mas sim ocres, da cor de uma terra na qual nada vinga, quase nada cresce. Essas areias, ou lágrimas, eram derramadas pela criança morta dos braços de uma mãe aparentemente inconsolável.
Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
"Criança Morta" (1944), de Portinari (Foto de Alex Contin)

Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
Da série "Retirantes" (1944), de Portinari (Foto de Alex Contin)
As duas obras, de Portinari, foram pintadas em 1944, seis anos após a publicação da primeira edição de “Vidas Secas” (1938), Graciliano Ramos. As telas fazem parte da coleção Retirantes e seus nomes são totalmente dispensáveis frente ao que elas nos apresentam de forma extremamente rica e “real”. Cada um a seu modo, Portinari e Ramos, retrataram a questão nordestina de suas épocas que hoje muitos continuam negando que existe ou, o que é pior, um dia existiu. No meio de tantas pinturas lindas, que aqui ou ali se desviaram ou não do academicismo de suas épocas, os quadros do Portinari e seu intertexto com “Vidas Secas”, são um soco tão grande no estômago que elas dizem “Você quer aura, @? Então toma!” Além disso, elas adquirem um sentido enorme ao estarem expostas no MASP: na Avenida Paulista, em São Paulo, a capital econômica do Brasil que tanto faz questão de perpetuar o preconceito pelos nordestinos (e, sinceramente, por quase tudo o que não é do Sudeste e de São Paulo).

Cada obra da exposição tem um pequeno texto explicativo atrás dela. A intenção, segunda a descrição do MASP, é justamente fazer o público experienciar primeiro a obra e depois ter mais informações sobre ela. Contudo, no caso dessas duas telas do Portinari, quase não dá vontade de querer entender o que elas significam. “A imagem já é chocante, talvez saber mais sobre ela desgrace ainda mais a cabeça!”, pensei. A vontade é só de ficar ali, colhendo detalhes com os olhos, lendo toda a narrativa que está por detrás “daquilo” e, acima disso, enxergar a crítica feita por meio daquela imagem. É realmente surreal.

“Maria Auxiliadora: Vida cotidiana, Pintura e Resistência”

Por fim e para recuperar o fôlego, as cores vibrantes de Maria Auxiliadora. A exposição faz parte da programação do “ano dedicado às histórias afro-atlânticas no MASP – as histórias dos fluxos e dos refluxos entre África e as Américas através do Atlântico”[4]. O colorido foi o que mais me chamou a atenção. Nos quadros da Auxiliadora parece não haver sequer resquício de rigor acadêmico da pintura. A liberdade, junto das cores, pulam dos quadros junto com a cultura brasileira e suas peculiaridades regionais.
Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"Banhistas" (1973), de Maria Auxiliadora

Quando sai do espaço dedicado às obras, fiquei imaginando as críticas feitas por aqueles intelectuais mais clássicos que só enxergam arte a partir de um conceito bem fechado (quase sempre elitista) obtido em livros (e não na experiência prática). Eis que, enquanto esperava ser atendido pelo funcionário da lojinha do MASP, ouvi uma conversa que me respondeu de pronto essa indagação pessoal. Um garoto bem branco, magro, alto, com cerca de 20 anos talvez, esperava o funcionário terminar seu cadastro no clube “Amigo MASP”, eis que é questionado: “Gostou das obras da Maria Auxiliadora?”. Ele fez uma cara de não muita amizade e comentou que não. O funcionário, que provavelmente já captara o gosto do menino, comentou: “Ela não tem um rigor acadêmico mesmo, né?”.

Foi praticamente uma pergunta retórica: o garoto havia deixado claro pela expressão e pelo tom de seu “não” que aquele tipo de obra, mais popular, não o agradava. Indo além de uma interpretação superficial e passando para uma mais especulativa, o que parece não ter agradado o garoto era única e exclusivamente a falta do tal “rigor” da pintura. Com isso em mente, ele provavelmente sequer olhou para a crítica feita pela artista. E, para falar a verdade, não era difícil enxergar essa crítica: a exposição contava com explicações e com um acervo pequeno de notícias e outras informações sobre como a Maria Auxiliadora usava sua arte como uma forma de resistência. Estava quase tudo dado para o interpretante, bastava escolher querer ou não interpretar.

Enfim, perder a virgindade do MASP foi uma experiência muito bacana. Tentei colocar minhas críticas pessoais à arte de lado para realmente tentar enxergar sua “evolução” ao longo do tempo. De certa forma o museu me ajudou muito nessa tarefa. As explicações das obras, quando lidas numa sequência como apoio à mensagem de cada pintura, ajudam muito a ver como a sociedade era retratada mimeticamente até um determinado período e como as obras incorporaram o conceito de arte à partir do século XIX (principalmente considerando toda a discussão sobre autonomia da arte feita por Bürger).


[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. (1935/1936) Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Editora brasiliense. Citação na p. 170.
[2] A exposição “Imagens do Aleijadinho” ficará disponível até dia 3 de junho de 2018. Mais informações aqui: https://masp.org.br/exposicoes/aleijadinho
[3] Texto da descrição da exposição “Acervo em transformação” do MASP. Disponível aqui: https://masp.org.br/exposicoes/acervo-em-transformacao
[4] Texto da descrição da exposição “Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência”, disponível no MASP até 3 de junho de 2018. Fonte e mais informações aqui: https://masp.org.br/exposicoes/maria-auxiliadora-da-silva-vida-cotidiana-pintura-e-resistencia