sábado, 21 de abril de 2018

A primeira visita ao MASP, provavelmente a gente nunca esquece


Uma das minhas maiores vergonhas, aos 30 anos de idade, era nunca ter visitado o Museu de Artes de São Paulo (MASP). Quando tinha tempo, não tinha dinheiro por estar desempregado; quando tinha dinheiro, o inverso.

Sempre gostei muito de visitar museus. Como turista, apesar das poucas e limitadas viagens, sempre tentei ir um aqui e outro lá para ver o quanto da história local eles guardavam. Em Limeira (SP), trabalhei durante um tempo em um prédio que brigava o museu, a escola de artes municipais e a biblioteca da cidade. Apesar do acervo limitado e a falta de atenção do Executivo para com as peças que fazem parte da história da cidade, as obras estavam lá, sob os cuidados de um ou dois funcionários que realmente entendiam a importância de guardar alguns elementos da história.
Em outras viagens, aquelas com a família para a praia ou em viagens sozinhos, conheci outros museus com acervos sobre a história local. Em Pedreira (interior de SP), Santos e Itanhaém (litoral SP) e Penedo (AL), cada um a seu modo e determinado pela sua história, esses museus eram tão importantes para suas cidades quanto o de Limeira, porém, também me lembro de ter a mesma impressão de carência de cuidados por parte das instituições públicas.

O primeiro museu realmente grande e “suntuoso” que conheci foi o Museu de História Natural de Nova York. Em 2013, ganhei um concurso cultural da Livraria Cultura e pude andar pelos corredores entre animais empalhados, representações de ossos de dinossauros, peças de vestuário, instrumentos de trabalho e tantos outros itens guardados naquele lugar. Naquele dia fiz uma viagem dentro de outra.

O Museu de História Natural não é algo para simplesmente visitar em uma manhã, como havíamos planejado (eu e minha irmã). Ele requer praticamente um dia inteiro se você pensa em cumprir com toda a proposta de aprendizagem que o local te oferece. São inúmeras e (quase) incontáveis informações sobre economia, biologia, sociologia, antropologia e tantas outras áreas do conhecimento, inclusive astronomia. Cada peça continha sua descrição e explicações contundentes sobre a importância daquele algo exposto dentro de quatro paredes.

Com um cronograma apertado, passamos pelo Museu de História Natural apenas como turistas apressados para cumprir o cronograma. Embora não tenhamos agilizado os passos para ver tudo e cumprir com o tempo previsto, não conseguimos, nem de longe, aproveitar todas as informações e exposições que o museu reúne. Lembro de ter ficado com inveja de alguns adolescentes que vi andando por lá com caderno e caneta nas mãos. Motivo pela curiosidade até parei um e perguntei o que eles estavam fazendo. A menina me disse que era uma tarefa da escola. Não lembro se ela entrou em detalhes sobre essa tarefa, mas achei uma forma excepcional de ensinar e aprender com peças que tornam a história praticamente viva ali diante dos olhos.

O MASP

Na experiência com o MASP resolvi fazer diferente daquela que tive até então como turista em Nova York e até em minha própria cidade natal. Com tempo, mas sem dinheiro, aproveitei que o museu tem entrada gratuita de terça-feira e me programei para passar a tarde por lá. Ao pesquisar no Google algumas informações sobre o MASP, vi que a média de tempo que os visitantes ficam no local era de 1h a 2h. Pouco tempo, portanto, uma tarde bastaria e realmente bastou.

Reservei a terça-feira, dia 3 de abril, para a visita. A motivação para ir agora e não antes foi pelos estudos do Modernismo brasileiro da década de 1920. Esse é o tema da disciplina de Literatura Brasileira I, do curso de Letras na USP. A professora já havia abordado algumas características de obras e movimentos de vanguarda europeus e brasileiro e estava começando a apresentar a semana de 1922 nas aulas. Além das aulas expositivas, duas leituras indicadas também colaboraram para a decisão: um capítulo do livro de Peter Bürger, “A teoria da vanguarda”’; e o artigo de Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Esses dois textos fizeram parte das discussões sobre o conceito de arte e as modificações pela qual ela passou ao longo do tempo até as primeiras décadas do século XX no Brasil.

Benjamin, por exemplo, trata em seu texto sobre a aura das obras de arte. Em suma, segundo ele, aura “É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja.”[1] Para além de uma definição sumária, o conceito envolve aquela aura, quase divina, que as obras têm. Sendo mais prático: é aquele ficar-de-queixo-caído quando nos deparamos com algo que mexe com os sentidos e nos surpreende pela sua beleza e singularidade. É o ficar chocado frente a algo glorioso. Enfim... há diversas definições que acredito que apenas a real experiência consegue definir com quase clareza.

Além disso tudo, na segunda-feira antes de minha visita a professora havia comentado sobre Aleijadinho[2] e a importância que os modernistas brasileiros viram na sua obra. O MASP estava com uma exposição justamente sobre nosso artista e a professora fez essa indicação de visita. Ok, vamos lá então conferir.

“Imagens do Alijadinho”

Todas trabalhadas em madeira, as exposição das “Imagens doAlijadinho” é um mergulho sobre a religião. Confesso que, apesar de só ter uma formação religiosa, mas não exercê-la, a exposição se restringiu apenas à apreciação das obras e a visão a composição do artista. Por ser leigo em artes, tentei esforçar minha visão para além daquilo que estava exposto à minha frente. Neste sentido, consegui observar alguns aspectos interessantes das imagens, mas fiquei profundamente incomodado com outras informações.
Exposição "Imagens do Aleijadinho", no MASP (Foto de divulgação)


Cada imagem ali exposta tinha seu nome e a época em que fora feita. Eram representações de diversos santos que faziam parte do imaginário e da religião mineira do século XVIII. Algumas realmente lindas, como a Nossa Senhora das Dores, feita entre 1791 e 1812, o São Francisco de Assis (século XVIII) e a Santa Ana Mestra (1791-1812). Ao olhar essas obras de perto, dá para ver, aqui e ali, algumas “rachuras” (acho que posso dizer assim) do entalhe da madeira.
Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"Nossa Senhora das Dores" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)

A pintura de cada uma delas também é algo muito bonito de se admirar. Enquanto algumas parecem ter recebido apenas uma camada de verniz (como o São Francisco de Assis); outras são ricas em detalhes nas estampas dos vestidos e letras no livro de Santa Ana Mestra.

Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"Santa Ana Mestra" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)

Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
Detalhe do livro de "Santa Ana Mestra" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)
De toda a exposição, contudo, o que mais me chamou a atenção foram os proprietários das obras. Isso foi algo que sempre me incomodou nas artes e não é tanto pelo caráter comercial da composição de algumas obras (quase como a reprodutibilidade criticada por Benjamin). Há obras totalmente comerciais, mas que mantém o artista presente ali em cada traço, cor e composição. O que me incomoda, de verdade, é saber que algumas estátuas do Aleijadinho, como as representações de São Manoel, de Nossa Senhora da Conceição, São Francisco de Assis, entre outras, pertencem a alguma Pessoa Física (com CPF e muito dinheiro para comprar a obra) e não à sociedade e à cidade na qual a obra foi feita. Essa é uma discussão mais batida que limão com cachaça e açúcar, mas da qual eu não consigo me isentar. São obras lindas que ficam na estante de alguém. De vez em quando saem dessa prateleira para compor uma exposição aqui e acolá, mas que são “propriedade” de alguém. Bom... obras de arte são patrimônio e entram até nos balanços de grandes empresas, então é uma discussão que já nasce morta, infelizmente.

Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"São Francisco de Assis" (século XVIII), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin)

Acervo em transformação

Depois de passar pelo primeiro andar, onde está Aleijadinho, parti para a exposição de obras da coleção do museu. A exposição “Acervo emtransformação” realmente me impressionou logo de cara pela forma como as obras estão expostas. Elas estão ali, a poucos centímetros da sua respiração e, vale dizer, podem sofrer danos se você respirar perto demais ou quiser colocar o dedo indicador na tela! Muitas pinturas são emolduradas com vidro, porém, várias não. Há uma fita no chão que indica a distância que você precisa manter do quadro, mas é uma distância realmente minúscula. Vi um adolescente quase colocando o dedo em uma obra e por um segundo senti o que é um princípio de infarto.
Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
Obras do "Acervo em Transformação" nos seus cavaletes de cristal. Quadro de Monet em destaque. (Foto de Alex Contin)

Segundo o MASP, o “Acervo em transformação” retoma os cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi e têm o objetivo de realmente aproximar o público das obras:

O retorno dos cavaletes não é um gesto nostálgico ou fetichista em relação a uma expografia icônica, mas deve ser compreendido como uma revisão do programa museológico de Lina Bo Bardi com suas contribuições espaciais e conceituais. A dimensão política de suas propostas é sugerida pela galeria aberta, transparente, fluida e permeável, que oferece múltiplas possibilidades de acesso e leitura, elimina hierarquias, roteiros predeterminados e desafia narrativas canônicas da história da arte. O gesto de retirar as pinturas da parede e colocá-las nos cavaletes aponta para a dessacralização das obras, tornando-as mais familiares ao público. Ainda, por outro lado, as legendas informativas colocadas no verso das obras possibilita um primeiro encontro com elas livre de contextualizações da história da arte. Nesse sentido, a experiência do museu torna-se mais humanizada, plural e democrática.[3]

Achei realmente incrível essa proposta de aproximação. Ter as obras tão próximo de nós, público, permite observar os traços, as cores, as texturas e os movimentos dos pinceis dos artistas. Em algumas obras, como “A canoa sobre Epte”, pintada por Monet por volta de 1890, parece ser importante o fato de você poder ver como ele pintou a água e de que forma usou tanto suas pinceladas como suas cores para fazer o reflexo na água. Em outras obras, como as de Picasso, a mesma coisa acontece. Sendo assim, essa proximidade permite contemplar muito mais que apenas a imagem.
Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
"A canos sobre Epte" (cerca de 1890), de Monet (Foto de Alex Contin)

Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
Detalhe da "A canos sobre Epte" (cerca de 1890), de Monet (Foto de Alex Contin)
 Abro mão de ficar falando sobre os artistas e suas obras (até porque reconheço minha ignorância sobre isso) para me focar em apenas um. Como as obras estão expostas em ordem cronológica, resolvi fazer meu próprio zigue-zague respeitando essa ordem. Contudo, ao andar de uma obra até a outra da mesma fila, ou ao trocar de fila, meus olhos eram atraídos por duas pinturas enormes e lindas, quase lá no final do salão. Quanto mais perto chegava, mais curioso ficava para observar as duas obras e tentar entender o que o artista queria me mostrar. A uma fila de distância, abandonei as demais obras que seguiriam meu caminho para finalmente encarar aqueles dois monstros.

A primeira obra, a esquerda, um grupo de pessoas passava a ideia de uma família, mas uma família realmente pobre. Suas roupas praticamente de trapos e as expressões de sofrimento em uma ilustração nem um pouco “realista” (com os traços bonitinhos de um autorretrato, por exemplo), passaram uma noção de realidade crua e muito cruel. Na obra da esquerda, tive a impressão de ver praticamente a mesma família retratada ao lado, como se fossem dois momentos de uma vida seca. Nessa segunda obra a família chorava. Não eram lágrimas azuis, redondinhas e perfeitas, mas sim ocres, da cor de uma terra na qual nada vinga, quase nada cresce. Essas areias, ou lágrimas, eram derramadas pela criança morta dos braços de uma mãe aparentemente inconsolável.
Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
"Criança Morta" (1944), de Portinari (Foto de Alex Contin)

Obra do acervo do MASP. Foto de Alex Contin.
Da série "Retirantes" (1944), de Portinari (Foto de Alex Contin)
As duas obras, de Portinari, foram pintadas em 1944, seis anos após a publicação da primeira edição de “Vidas Secas” (1938), Graciliano Ramos. As telas fazem parte da coleção Retirantes e seus nomes são totalmente dispensáveis frente ao que elas nos apresentam de forma extremamente rica e “real”. Cada um a seu modo, Portinari e Ramos, retrataram a questão nordestina de suas épocas que hoje muitos continuam negando que existe ou, o que é pior, um dia existiu. No meio de tantas pinturas lindas, que aqui ou ali se desviaram ou não do academicismo de suas épocas, os quadros do Portinari e seu intertexto com “Vidas Secas”, são um soco tão grande no estômago que elas dizem “Você quer aura, @? Então toma!” Além disso, elas adquirem um sentido enorme ao estarem expostas no MASP: na Avenida Paulista, em São Paulo, a capital econômica do Brasil que tanto faz questão de perpetuar o preconceito pelos nordestinos (e, sinceramente, por quase tudo o que não é do Sudeste e de São Paulo).

Cada obra da exposição tem um pequeno texto explicativo atrás dela. A intenção, segunda a descrição do MASP, é justamente fazer o público experienciar primeiro a obra e depois ter mais informações sobre ela. Contudo, no caso dessas duas telas do Portinari, quase não dá vontade de querer entender o que elas significam. “A imagem já é chocante, talvez saber mais sobre ela desgrace ainda mais a cabeça!”, pensei. A vontade é só de ficar ali, colhendo detalhes com os olhos, lendo toda a narrativa que está por detrás “daquilo” e, acima disso, enxergar a crítica feita por meio daquela imagem. É realmente surreal.

“Maria Auxiliadora: Vida cotidiana, Pintura e Resistência”

Por fim e para recuperar o fôlego, as cores vibrantes de Maria Auxiliadora. A exposição faz parte da programação do “ano dedicado às histórias afro-atlânticas no MASP – as histórias dos fluxos e dos refluxos entre África e as Américas através do Atlântico”[4]. O colorido foi o que mais me chamou a atenção. Nos quadros da Auxiliadora parece não haver sequer resquício de rigor acadêmico da pintura. A liberdade, junto das cores, pulam dos quadros junto com a cultura brasileira e suas peculiaridades regionais.
Obra em exposição no MASP até 3/6/2018. Foto de Alex Contin.
"Banhistas" (1973), de Maria Auxiliadora

Quando sai do espaço dedicado às obras, fiquei imaginando as críticas feitas por aqueles intelectuais mais clássicos que só enxergam arte a partir de um conceito bem fechado (quase sempre elitista) obtido em livros (e não na experiência prática). Eis que, enquanto esperava ser atendido pelo funcionário da lojinha do MASP, ouvi uma conversa que me respondeu de pronto essa indagação pessoal. Um garoto bem branco, magro, alto, com cerca de 20 anos talvez, esperava o funcionário terminar seu cadastro no clube “Amigo MASP”, eis que é questionado: “Gostou das obras da Maria Auxiliadora?”. Ele fez uma cara de não muita amizade e comentou que não. O funcionário, que provavelmente já captara o gosto do menino, comentou: “Ela não tem um rigor acadêmico mesmo, né?”.

Foi praticamente uma pergunta retórica: o garoto havia deixado claro pela expressão e pelo tom de seu “não” que aquele tipo de obra, mais popular, não o agradava. Indo além de uma interpretação superficial e passando para uma mais especulativa, o que parece não ter agradado o garoto era única e exclusivamente a falta do tal “rigor” da pintura. Com isso em mente, ele provavelmente sequer olhou para a crítica feita pela artista. E, para falar a verdade, não era difícil enxergar essa crítica: a exposição contava com explicações e com um acervo pequeno de notícias e outras informações sobre como a Maria Auxiliadora usava sua arte como uma forma de resistência. Estava quase tudo dado para o interpretante, bastava escolher querer ou não interpretar.

Enfim, perder a virgindade do MASP foi uma experiência muito bacana. Tentei colocar minhas críticas pessoais à arte de lado para realmente tentar enxergar sua “evolução” ao longo do tempo. De certa forma o museu me ajudou muito nessa tarefa. As explicações das obras, quando lidas numa sequência como apoio à mensagem de cada pintura, ajudam muito a ver como a sociedade era retratada mimeticamente até um determinado período e como as obras incorporaram o conceito de arte à partir do século XIX (principalmente considerando toda a discussão sobre autonomia da arte feita por Bürger).


[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. (1935/1936) Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Editora brasiliense. Citação na p. 170.
[2] A exposição “Imagens do Aleijadinho” ficará disponível até dia 3 de junho de 2018. Mais informações aqui: https://masp.org.br/exposicoes/aleijadinho
[3] Texto da descrição da exposição “Acervo em transformação” do MASP. Disponível aqui: https://masp.org.br/exposicoes/acervo-em-transformacao
[4] Texto da descrição da exposição “Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência”, disponível no MASP até 3 de junho de 2018. Fonte e mais informações aqui: https://masp.org.br/exposicoes/maria-auxiliadora-da-silva-vida-cotidiana-pintura-e-resistencia

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