quarta-feira, 28 de abril de 2010

Catarse escrita



“[...] Você tem as pragas que lhes cabem; sente no interim do teu ser o mal que faz aos outros com suas palavras e frases inacabadas na lentidão dos seus pensamentos.

“Você não presta. Bate no peito como se no final de cada prosa se autoproclamasse o exemplo de ética para os demais membros da sua classe. Se conseguisse realmente enxergar aquilo que reflete todos os dias pela manhã no espelho pequeno e quadrado pendurado na parede da casa cujo aluguel é pago com o preço da sua incompetência nessa província que chama de lar. Espelhinho tão pequeno quanto a capacidade profissional que pensa ter. Tão ridícula e pequena quanto o seleto grupo de colegas dos tipos e colunas que se entusiasmam exclamando ‘sensacional’ para as mesmices das críticas – seus conjuntos de palavras que não passam de ataques e apontamentos vazios, sem solução, sem a mesma alma daqueles que o precederam, com único fim de enaltecer esse ego podre.

“Quando parar de bater no peito achando sua transparência justa e por fim enxergar a imagem que é feita além dos interesses políticos dos membros de sua província sem valor, talvez seus pecados deixem de mandar a fatura do inferno para seus órgãos condenados”


Com a mão dolorida, repousou finalmente a caneta ao lado da folha amarelada. Há alguns meses tentava encontrar as palavras ideais para a carta final. O papel precisou de um leve assopro para retirar as partículas de poeira que se assentaram sobre a mesa no canto do quarto.

A imagem da cadeira, a vela queimada pela metade e a pilha de livros organizada por tamanho aumentava a angústia de cada dia. Da cama via pela janela o sol percorrer meio céu. Sabia quando o astro rei se punha, pelos telhados mais altos das casa vizinhas. Ali passou dias sem comer. Para ali sempre voltava depois de alguns passos pelos outros cômodos da casa. Sair dos lençóis e conversar meias palavras com alguém era a alegria de sua mãe, Maria dos Anjos. A mulher grande e forte que cuidava tão bem do lar como de sua aparência o recebia com largos sorrisos. Sempre com uma forma de bolo de milho ou broas assando no forno a lenha. Especiarias que acompanhavam as conversas na sala de estar ‘e que por vezes alimentaram aquela alma suja que tanto desgosto trouxe para os infinitos dias que antecederam sua catarse escrita’.

O último a provar da receita especial de Maria dos Anjos foi Heródoto, o psicólogo. Nos últimos meses sua presença era periódica. No fim de cada uma um diagnóstico otimista. A melhor conclusão dos quarenta e cinco minutos de conversa viria em breve, depois que aquele homem careca, rechonchudo e de estatura baixa tomasse conhecimento da esperada e estimulada carta.

O ódio que sentia fazia seu autor perder noites de sono finalmente estava transcrito. Talvez sofresse alguma readequação, além de uma bela revisão para finalmente ser encaminhado para os arquivos de Heródoto. Não era da sua vontade que uma de suas prosas fosse guardada por alguém com erros gramaticais imperdoáveis, tão pouco com concordâncias inadequadas ou estilismos exagerados.

Mesmo com os planos de ainda ter a carta publicada na concorrência num espaço nobre junto aos cronistas da época, a incerteza ainda era mais forte. A cada palavra que o nanquim registrava no canson, as lembranças dos dias que teve de aguentar o ser que mais desprezava na Terra, desde seus tempos de estudo, passava como nuvens pela sua memória. Tentou dizer tudo mas duvidava se o ser era merecedor de tal composição. Acrescentaria “um indivíduo tão pequeno quanto à ameba mais incompleta; ameba que ainda deve ser digna e maior que a humildade e honestidade que pensas ter”, uma comparação, ou tentativa de, para expressar como o nada se compara ao remetente.

Até aquele dia, Ângelo não acreditava qual o segredo para vencer na vida sendo um fracassado. Dos prazos e metas, só desculpas e acusações da incompetência alheia como justificativa. Coleguismo e espírito de equipe era uma qualidade em falta naquele ambiente, apesar de ser a mais cobrada, não era exemplificada por quem deveria. A falsidade reinava soberana quando o discurso do dia era regado de elogios para o veterano do grupo. Não fossem as leis de estabilidade, ele seria o próximo nome da lista da revolta. Não fosse a mesma legislação e seus direitos, ele não se obrigaria toda manhã a aguentar o veneno que já provara anteriormente.

‘Covarde, não tens coragem de olhar nos meus olhos e dizer a verdade. Admita que não presta e diga que a substituição é a melhor arma para evitar a sua dispensa futura’

O que Ângelo não entendia era a lógica capitalista que permitia uma força de frenagem nos avanços do desenvolvimento da empresa. Que qualidade havia no atraso, ou ainda, na perda para a concorrência? Ou então no mal-estar entre departamentos e acusações errôneas? ‘Plágio? Quem faz plágios naquele lugar?’ Afinal alguém que prefere reduzir custos a investir em quem assina está preocupado com as palavras e atitudes nos meios?

‘Os fins justificam os meios’.

Questionamentos. Ângelo tinha questões que nunca seriam respondidas tamanha a covardia perante seu eu-profissional. Mas isso era de praxe naquele lugar. Se empenhar no serviço não era o caminho para a estabilidade. Ser burro o suficiente para aceitar o ridículo e ficar quieto perante o errado era qualidade exigida.

‘E confiança? Há tal substantivo abstrato em um ambiente corporativo guiado pela demência de um retardado?’

No fim resta dó. Refém da má educação dos filhos, humilhado pela primeira separação e já desligado pelos mesmos erros do presente não devem fazer a maciez do travesseiro e a excelente condição física do abrigo, da embalagem desse doce estragado pelo tempo e pelos piores ingredientes da confeitaria.

A escolha de Ângelo, por hora, foi manter a carta no fim da pilha de papéis. Não era virar aquela página, mas reservá-la para o momento oportuno. Todo império um dia cai. Mais fácil chegar às ruínas os pseudo-impérios, sustentados pela exploração indevida dos fracos e elevação dos egos superiores. Os papéis que vieram em seguida ele usou para escrever as suas melhores prosas. Fez gráficos, rascunhos para estudos, escreveu sua meta para aqueles próximos anos. Desenhou. Comeu broas e bolos e assoprou as migalhas que ficavam sobre as folhas amareladas.

Mais meses se passaram. Agora longe dos lençóis. Ângelo acompanhava o sol do campo, não do quarto. Antes de terminar a pilha de papéis, ele deu as costas para a província e partiu para papéis maiores e desafios empolgantes e confiáveis.

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