quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Desigualdade de renda, condições e vida. Alguns trechos do Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2006 do Banco Mundial

Certa vez, num grupo de economia no Facebook, entre em uma discussão sobre os benefícios do livre mercado e a não intervenção do governo. A maior parte daqueles que estavam discutindo, acho que posso dizer, eram conservadores ou liberais. A conversa foi feita em um post sobre a transformação da Argentina em uma economia socialista (por conta de regulações colocadas por Christina Kirchner às empresas nacionais).

Em certo ponto da discussão surgiu o tema da liberdade de escolha e as oportunidades iguais a todos. Este assunto veio à tona principalmente depois que comentamos sobre as propostas da candidata à presidência Luciana Genro ter como projeto a taxação de grandes riquezas no Brasil. Como estava no meio de vários liberais, a proposta foi vista como ruim e alguns dos economistas que lá debatiam não viam lógica em distribuir renda mesmo que o dono de uma grande riqueza fosse alguém que, embora pobre, tivesse uma grande ideia e enriquecesse com base em seu esforço. Meritocracia pura.

Dada essa primeira historinha, vou colocar abaixo uma outra que li no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2006 do Banco Mundial. Confesso que fiquei surpreso de ler uma narrativa tão instigante num documento de uma das instituições máximas da economia mundial, acho que posso definir assim.  Segue, portanto, o texto (a imagem é meramente ilustrativa e não faz parte do relatório):



Imaginemos duas crianças sul-africanas nascidas no mesmo dia do ano de 2000. Nthabiseng é negra, filha de família pobre da zona rural da província de Eastern Cape, a cerca de 700 quilômetros da Cidade do Cabo. Sua mãe não recebeu educação formal. Pieter é branco, filho de família próspera da Cidade do Cabo. Sua mãe completou o terceiro grau na respeitada Stellenbosch University, próxima de casa.

No dia de seu nascimento, Nthabiseng e Pieter não podiam, a rigor, ser responsabilizados pelas condições de suas famílias: suas etnias, nível de renda e de educação de seus pais, sua localização urbana ou rural ou até mesmo seu sexo. Mas as estatísticas sugerem que essas variáveis históricas pré-determinadas farão grande diferença em sua vida. Nthabiseng tem 7,2% de possibilidade de morrer no primeiro ano de vida, mais do dobro dos 3% de Pieter. Pieter pode esperar viver até os 68 anos. Nthabiseng, até os 50. Pieter pode esperar completar 12 anos de educação formal. Nthabiseng, menos de 1 ano. Nthabiseng provavelmente será significativamente mais pobre do que Pieter durante toda a vida. Quando crescer, ela provavelmente terá menos acesso à água limpa e saneamento ou a boas escolas. Portanto as oportunidades com que essas duas crianças se deparam para alcançar todo o seu potencial humano são extremamente diferentes desde o início, sem que elas próprias tenham culpa disto.

Essas disparidades de oportunidades refletem-se em diferentes capacidades de contribuir para o desenvolvimento da África do Sul. Talvez as condições de saúde de Nthabiseng ao nascer fossem piores, devido à pior nutrição de sua mãe durante a gravidez. Devido à socialização de seus gêneros, localização geográfica e acesso a escolas, Pieter tem muito mais possibilidade de adquirir uma educação que o permita utilizar integralmente seus talentos naturais. Mesmo que aos 25 anos, e apesar das dificuldades, Nthabiseng consiga ter uma excelente idéia acerca de negócios (como uma inovação para aumentar a produção agrícola), ela terá muito mais dificuldade em convencer um banco a emprestar-lhe dinheiro a uma taxa de juros razoável. Se Pieter tiver uma idéia igualmente interessante (como o projeto de uma versão avançada de um software promissor) terá mais facilidade em obter crédito tendo tanto um diploma universitário, quanto muito provavelmente algum colateral. Com a transição para a democracia na África do Sul, Nthabiseng pode votar e, dessa forma, indiretamente moldar a política de seu governo, algo que era negado aos negros durante o apartheid. Mas o legado da desigualdade de oportunidades e da força política do apartheid ainda permanecerão por alguns anos. Há um longo caminho a percorrer entre essa (fundamental) mudança política e as mudanças de condições econômicas e sociais.

Por mais surpreendentes que sejam as diferenças de oportunidades durante a vida entre Pieter e Nthabiseng na África do Sul, elas são minimizadas pelas disparidades entre os sul-africanos médios e os cidadãos de países mais desenvolvidos. Consideremos as chances de Sven – nascido no mesmo dia em uma família típica da Suécia. Sua possibilidade de morrer no primeiro ano de vida é muito pequena (0,3%) e ele pode esperar viver até os 80 anos, 12 anos mais do que Pieter e 30 mais que Nthabiseng. Ele provavelmente completará 11,4 anos de educação – 5 anos mais do que o sul-africano médio. Essas diferenças de tempo de escolaridade são agravadas pelas diferenças de qualidade: na oitava série, Sven terá expectativa de marcar 500 pontos em um teste comparativo internacional em matemática, enquanto o estudante sul-africano médio obterá uma pontuação de apenas 264 – mais de dois desvios padrão abaixo da média da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OECD). Nthabiseng muito provavelmente nunca chegará à oitava série e, portanto, não fará o teste. Essas diferenças de oportunidades de vida entre nacionalidades, etnias, gêneros e grupos sociais chocarão muitos leitores como fundamentalmente injustas. Elas podem também levar à perda de potencial humano e, portanto, à perda de oportunidades de desenvolvimento. É por isso que o Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2006 analisa a relação entre eqüidade e desenvolvimento.


Como encontrei mais algumas citações interessantes no mesmo documento, resolvi coloca-las logo abaixo. Os números em parênteses correspondem à página de onde copiei o trecho. Os grifos em negrito foram feitos por mim.


A quantificação direta da desigualdade de oportunidades é difícil, mas uma análise do Brasil serve de exemplo. A desigualdade de renda em 1996 foi dividida no seguinte: uma parcela atribuída a quatro circunstâncias predeterminadas que fogem ao controle das pessoas – etnia, região de nascimento, nível de escolaridade dos pais e ocupação dos pais no nascimento – e uma parcela residual. Essas quatro circunstâncias são responsáveis por cerca de um quarto de todas as diferenças de renda entre os trabalhadores. Pode-se argumentar que outros determinantes das oportunidades também são predeterminados ao nascimento, mas não foram incluídos neste conjunto – por exemplo, gênero, condição financeira da família ou a qualidade da educação básica. Como essas variáveis não estão incluídas na “decomposição” da desigualdade, esses resultados podem ser considerados como estimativas de um limite inferior da desigualdade de oportunidade no Brasil. (p. 4)

Infelizmente, as circunstâncias predeterminadas (e, portanto, moralmente irrelevantes) definem muito mais do que apenas os rendimentos futuros. Educação e saúde têm valor intrínseco e afetam a capacidade dos indivíduos de se integrarem à vida econômica, social e política. Mas as crianças defrontam-se com oportunidades substancialmente diferentes para aprender e ter vida saudável em quase todas as populações, dependendo de suas condições financeiras, localização geográfica ou educação dos pais, entre outros fatores. (p. 4-5)

Significativas diferenças de gênero também persistem em muitas regiões do mundo. Em partes do Leste e Sul da Ásia, especialmente em áreas rurais da China e noroeste da Índia, a oportunidade de simplesmente viver pode depender de uma única característica predeterminada: sexo. Essas regiões têm um número consideravelmente maior de meninos do que meninas devido, em parte, ao aborto seletivo e à diferença de cuidados após o nascimento. E em muitas (nem todas) partes do mundo, mais meninos do que meninas frequentam a escola. (p. 5)

Um cidadão comum nascido entre 1975 e 1979 na África subsaariana tem apenas 5,4 anos de escolaridade. No Sul da Ásia, esse número sobe para 6,3 anos; nos países da OEDC é de 13,4 anos. (p. 6)

A média dos gastos anuais com consumo varia desde US$279 em Paridade do Poder de Compra (PPP) na Nigéria até US$17,232 em PPP em Luxemburgo. Isso significa que o cidadão médio em Luxemburgo dispõe de recursos monetários 62 vezes superior do que o nigeriano médio. (p. 6-7)

A surpreendente evidência do impacto da criação de estereótipos no desempenho vem de um recente experimento na Índia. Pediu-se a crianças de diferentes castas que fizessem exercícios simples, tais como resolver labirintos, com incentivos em dinheiro condicionados ao desempenho. O resultado mais importante do experimento é que as crianças de castas inferiores têm desempenho igual às das castas superiores quando sua casta não é anunciada publicamente pelo condutor do experimento, mas desempenho significativamente inferior quando a casta é divulgada. (p. 9)

 Fonte: BIRD. Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial 2006. Washington, DC: Banco Mundial, 2006. Visão geral. 


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