Nas entrevistas, contudo, o tom é dado de uma forma totalmente diferente: ele está na apresentação do texto ou na formulação das perguntas. Geralmente os primeiros parágrafos servem tanto para apresentar quem é o entrevistado, como também para dar uma ideia geral do pensamento, ideia ou ideal que esse profissional segue ou expressa. Já as perguntas mostram o outro lado da moeda: o do jornalista que conduz a entrevista ou do veículo no qual o diálogo é publicado. É possível ver, por exemplo, a preparação do profissional ou a disposição dele de obter informações que podem beneficiar ou até "prejudicar" o entrevistado.
A entrevista com o presidente da Usiminas, o engenheiro metalúrgico Sergio Leite, publicada hoje (31/10) no Correio Brasiliense, serve de exemplo para observar o comportamento do jornalista. Embora não seja explicitada a condição imposta ao diálogo, em três momentos o entrevistador perde importantes pontos que poderiam contradizer o entrevistado e até o programa econômico do próximo governo. É bom salientar que por "condição imposta ao diálogo" quero dizer que a entrevista pode ter sido comprada pela Usiminas para destacar sua magnitude e capacidade de recuperação; pode ter sido um "brinde" ao anunciante do jornal; pode também ser uma ressalva à importância de se olhar para a indústria e à infraestrutura do Brasil num cenário no qual Paulo Guedes critica a indústria brasileira; pode também ter sido cortada pelo editor chefe do jornal a fim de garantir uma boa relação com a empresa; entre outras mil possibilidades.
Sendo assim, quando lemos uma entrevista, devemos ficar atentos à formulação das perguntas. Elas podem só ser um subsídio para conduzir o que o entrevistado quer falar ou um confronto intelectual para trazer a transparência e mais informações para a conversa. Olha só esses exemplos retirados da entrevista selecionada:
Correio Brasiliense (CB): Quais são os problemas centrais que o novo governo deve atacar?
Sergio Leite (SL): Nós temos problemas sérios no campo da saúde, da educação e da infraestrutura. Enfrentar os desafios nessas três áreas passa por uma grande capacidade de gestão e de investimentos. Na parte de gestão, precisamos fazer uma reforma profunda no Estado brasileiro e trazê-lo para a dimensão que ele precisa, com ajustes das contas públicas. É preciso essencialmente voltar ao superavit primário e começar um processo de regularização das contas públicas. Esse processo deve levar em consideração também a reforma da Previdência e a reforma fiscal. Reforço: neste momento, devemos reduzir ao máximo os gastos com a máquina governamental.
Leite diz que precisamos de gestão e investimentos nas áreas de saúde, educação e infraestrutura, certo? Ele diz que o caminho é regular as contas da máquina pública, levando em consideração as reformas fiscal e da Previdência. Ele não diz, contudo, sobre como os investimentos poderiam ser feitos. Aliás, a pergunta que fica é: "Como poderiam ser feitos investimentos na educação e saúde para acabar com o problema nessas áreas, se há um limite para gastos do governo (a PEC do Teto de Gastos)?" Ele aponta e explica um caminho (da gestão) e só menciona o outro (dos investimentos). Frente à essa resposta vaga, o que o repórter pergunta na sequência? Veja: "Os problemas são, de fato, monumentais. O Brasil vai conseguir sair rapidamente da crise?" e "O senhor chegou a se encontrar com o presidente eleito, Jair Bolsonaro?". Em nenhuma das duas respostas ele fala sobre como poderiam ser feitos os investimentos e o tema passa batido.
Outro ponto no qual o jornalista perde uma oportunidade incrível:
CB: O maior competidor da indústria brasileira do aço é a China, certo?SL: Sim, mas na China nós não competimos contra empresas, mas contra um Estado. Trata-se de um Estado que não é uma economia de mercado, que não remunera adequadamente sua mão de obra, que não remunera adequadamente o capital e em que a prática do subsídio está presente na indústria. Ou seja, é uma concorrência desleal. Esse posicionamento da China gerou reação dos Estados Unidos. Por sua vez, a decisão protecionista do presidente Trump desencadeou uma série de reações na Europa, África e Ásia. A única região que não aplicou medidas para fazer frente a essa decisão de Trump foi a América Latina. Por isso, eu digo que é preciso fazer uma reflexão: faz sentido o Brasil ser um país liberal nas suas relações comerciais num mundo notadamente protecionista?
Reparem na última declaração de Leite. O jornalista poderia pegar essa declaração como um gancho e questionar: "Por que é preciso avaliar se faz sentido ser um país liberal?"; ou "Qual o risco para o Brasil de adotar uma política liberal frente a um cenário internacional protecionista?"; ou "Quais os entraves que uma economia liberal enfrentaria numa concorrência internacional protecionista?". O que o jornalista pergunta? Isso aqui: "Apesar da crise dos últimos anos, a Usiminas vem de uma série de resultados financeiros sólidos, voltando inclusive a operar no azul. Como isso foi possível?", tirando o foco do cenário internacional e do programa liberal de Paulo Guedes e voltando a focar no quão maravilhosa é a capacidade de Sergio Leite de reerguer a Usiminas. Esse tipo de fuga do assunto é totalmente estratégico, afinal, a resposta poderia comprometer as relações da Usiminas com o governo fascista ou comprometer o Correio Brasiliense e transformá-lo na próxima Folha de S.Paulo.
Para acabar, um último jogo de pergunta e resposta mal aproveitado:
CB: A Usiminas é um caso especial, já que ela tem acionistas japoneses e ítalo-argentinos e uma gestão brasileira. Como é trabalhar com múltiplas nacionalidades?SL: É um desafio e uma experiência extraordinária. Temos na Usiminas três forças: os brasileiros, que somam a maior parte da força de trabalho, os ítalo-argentinos e os japoneses. Tenho uma relação sólida com todos os grupos, porque o trabalho foi sempre o de buscar integração e equilíbrio. Atravessamos um período grande de conflito acionário, mas conseguimos unir as forças dentro da empresa. No “Grupo dos 10”, tenho profissionais que representam o acionista ítalo-argentino, outros que representam o acionista japonês, e os que fazem parte da força de trabalho brasileira. Durante mais de um ano e meio, conseguimos trabalhar de forma integrada, unida e pacífica. Conseguimos inclusive selar um novo acordo de acionistas, que trouxe a paz. Hoje, vivemos um cenário muito positivo. Estamos todos de mãos dadas trabalhando para construir o presente e o futuro da Usiminas.
Qual é a questão aqui? Claro: "Como ficariam as relações da Usiminas com a Argentina, se Paulo Guedes já deixou claro que pode não dar preferência aos países vizinhos e ao MercoSul para priorizar as relações com os Estados Unidos?". O jornalista entra nesse ponto? Claro que não. Ele, na verdade, até faz uma pergunta que poderia levar a esse questionamento das relações com os países sul americanos, mas ela é mais focada na gestão da Usiminas: "Como está o plano de investimentos da empresa? Diante da melhoria dos resultados, os planos foram ampliados?" e o assunto morre.
Com esses três assuntos negligenciados é possível reforçar que as entrevistas mostram, e muito, a capacidade ou disposição que o veículo de comunicação tem para o diálogo. Como comentei anteriormente, as entrevistas podem ser só mais um negócio da área comercial do jornal, porém, se é assim, ela não cumpre com seu papel de questionar e esclarecer pontos importantes do cenário politico e econômico. Sem isso, as entrevistas se resumem a "puxar saco" da empresa, profissional ou anunciante.