Resolvi publicar este trecho tanto por conta do período eleitoral quanto pelo lançamento do documentário "Privatizações: a distopia do capital", de Silvio Tendler. Este texto foi qualificado, junto com o restante da dissertação, em agosto de 2014. A pesquisa continua em andamento e ainda não foram incorporados as informações tanto do documentário quanto de outras referências teóricas, mas já pode ser uma contribuição ao debate sobre o tema.
Programa Nacional de
Desestatização
Em 1991, é criado o Programa Nacional de Desestatização (PND). As
justificativas para a desestatização durante o governo Collor era o uso dos
recursos arrecadados nas áreas sociais, modernização da indústria brasileira e
resgate da dívida pública. Apesar de no final da década de 1980 já ter
acontecido privatizações de 39 empresas de diversos setores, sendo a principal
delas a Aracruz Celulose, e uma arrecadação de 735 milhões de dólares, foi no
governo de FHC que este processo foi mais voraz para a economia e para a
crítica brasileira.
A justificativa no governo de FHC “também foi o atendimento das áreas
sociais, inicialmente, mas aos poucos a redução
da dívida pública passou a ser apresentada como questão central” (Filgueiras:
2007, p. 113). Além da dívida, Filgueiras cita Haddad (1998) para mostrar a
ligação entre o processo de desestatização com o Plano Real:
(...) a verdadeira âncora do Plano Real tem sido o
patrimônio público acumulado nos últimos 50 anos, os famosos Sauros... Esse é o
lastro que mantém a credibilidade do programa de estabilização. As reservas cambiais
suportariam pouco mais do que alguns meses de déficit em transações correntes,
isso na hipótese de inexistência de uma onda especulativa contra a moeda
nacional’ (HADDAD: 1998 apud Filgueiras: 2007, p. 114)
O governo privatizou empresas do setor de serviços, principalmente da
área de telecomunicações e energia, além da Vale do Rio Doce. Esses setores são
considerados estratégicos para a soberania nacional. Desde o começo do PND, em
1991, até 1999, foram privatizadas 64 empresas estatais, sendo 18 no governo
Collor, 15 no governo de Itamar Franco e o restante (31 empresas) durante a era
FHC (Filgueiras: 2007). Considerando o período entre 1995 a novembro de 2000
foram privatizadas 40 empresas, sendo sete concessionárias de serviços
públicos.
Tabela 1:
Resultados do Programa Nacional de Desestatização
1991-jul./99
– US$ milhões
Período
|
Nº de
empresas
|
Receita
de vendas
|
Dívidas
transferidas
|
Total
|
1991
|
4
|
1.614
|
374
|
1.988
|
1992
|
14
|
2.401
|
982
|
3.383
|
1993
|
6
|
2.627
|
1.561
|
4.188
|
1994
|
9
|
1.966
|
349
|
2.315
|
1995
|
8
|
1.003
|
625
|
1.628
|
1996
|
11
|
4.080
|
669
|
4.749
|
1997
|
4
|
4.265
|
3.559
|
7.824
|
1998
|
7
|
1.574
|
1.082
|
2.737
|
até
jul./99
|
1
|
49
|
-
|
49
|
Total
|
64
|
19.579
|
9.201
|
28.861
|
Fonte: BNDES apud Filgueiras (2007, p. 114)
A crítica favorável ao governo aponta o processo como benéfico para o
Brasil:
Primeiro, a dívida pública foi favoravelmente afetada, no
sentido de que sem a privatização ela seria maior ainda. Segundo, na maioria
dos casos, as empresas ficaram em melhor situação e se tornaram mais eficientes
depois de vendidas do que antes. Terceiro, no caso das telecomunicações, em
particular, houve claros benefícios sociais, medidos, por exemplo, pela queda
do preço das linhas de telefonia fixa, pela redução do tempo de espera para
obtenção das linhas, e, principalmente, pela proporção de telefones fixos por
habitante, que, conforme a Anatel, em 1998 – ano da privatização – era de
apenas 17 por 100 habitantes e, quatro anos depois, tinha passado para mais do
dobro, fenômeno concentrado nas classes C e D. E, quarto, no caso dos estados,
a venda das empresas em situação financeira mais crítica melhorou
substancialmente o resultado fiscal das empresas estatais estaduais, que sofreu
uma evolução positiva praticamente contínua, passando de um déficit primário de
0,5% do PIB em 1995 e, ainda, de 0,1% do PIB em 1998, para um superávit nesse
conceito de 0,3% do PIB em 2002, sendo parte importante do ajustamento do setor
público. (GIAMBIAGI, 2005, p. 187)
Já os poucos que se opunham à privatização, entre eles o jornalista
Aloysio Biondi, da Gazeta Mercantil, apontavam os riscos para o país ao
beneficiarem o capital estrangeiro, em detrimento dos empresários
brasileiros. Este processo de
privatização contou com a conivência da grande imprensa com a política do PND
continuada e reforçada por FHC.
Segundo Biondi (2003), os favorecimentos a empresários se deram tanto na
venda das empresas de telecomunicações, como dos bancos e da siderurgia. O
primeiro setor recebeu investimentos do governo federal no valor de 21 bilhões
de reais dois anos e meio antes que as estatais fossem vendidas por 8,8 bilhões
de reais; no segundo setor, o Banco do Estado do Rio de Janeiro empréstimo de
3,3 bilhões de reais para pagamento de direitos trabalhistas antes da venda por
330 milhões de reais.
Por fim, só a título de ilustração, na compra da Companhia Siderúrgica
Nacional (CSN) foram usados 1,01 bilhões de reais em moedas podres, de um total
da venda de 1,05 bilhão de reais, e essas moedas ainda foram financiadas em 12
anos pelo governo brasileiro, por meio do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES).
De acordo com Biondi, nem todas as informações relacionadas ao processo
de venda das estatais brasileiras foram levadas ao conhecimento da população,
além disso, o autor critica a conivência da imprensa com o governo:
Sem sombra de dúvida, os meios de comunicação, com seu
apoio incondicional às privatizações, foram um aliado poderoso. Houve a
campanha de desmoralização das estatais e a ladainha do “esgotamento dos
recursos do Estado”. Mais ainda: a sociedade brasileira perdeu completamente a
noção – se é que a tinha – de que as estatais não são empresas de propriedade
do “governo”, que pode dispor delas a seu bel-prazer. Esqueceu-se de que o
Estado é mero “gerente” dos bens, do patrimônio da sociedade, isto é, que as
estatais sempre pertenceram a cada cidadão, portanto a todos os cidadãos, e não
ao governo federal ou estadual. Essa falta de consciência coletiva, reforçada
pelos meios de comunicação, repita-se, explica a indiferença com que a opinião
pública viu o governo doar por 10 o que valia 100. Um “negócio da China” que,
em sua vida particular, nenhum trabalhador, empresário, nenhuma família de
classe média ou o povão aceitariam. (BIONDI, 2003, p. 21)
Apesar de não estar mais preso às amarras de um regime autoritário e que
marcou a história do jornalismo com sua censura, o jornalismo brasileiro de uma
década após o fim da ditadura, em 1985, não se desvencilhou completamente de
poder político e seguiu com o oficialismo manipulador de um governo que
modificou a economia nacional em prol de uma política internacional neoliberal.
O mais grave, para o jornalismo, foram os cerceamentos velado às opiniões da
oposição e a adesão da maioria dos jornalistas da grande imprensa à privatização,
limitando o debate público apenas à ala favorável à venda do Brasil.
A crítica ao processo também considera a concentração de renda como um
efeito negativo das desestatizações. Segundo Paulani (1998 apud Filgueiras:
2007, p. 116), um resultado evidente é “o fortalecimento de determinados
grupos, a desnacionalização e o aumento do grau de concentração e, portanto, do
poder de monopólio em quase todos os setores”. Além disso,
De outro lado, com relação ao seu papel no interior da
política de estabilização, podemos constatar que, do ponto de vista da solução
para o problema da dívida interna, as privatizações não conseguiram, nem de
longe, impedir o seu impressionante crescimento. Mesmo no que concerne ao plano
externo da economia, onde o objetivo com as privatizações era permitir a
entrada de capitais estrangeiros na forma de investimentos diretos, dando um
tempo maior para a política de estabilização substitui a “âncora cambial”, o
Governo não obteve sucesso. A situação se deteriorou rapidamente e a crise
cambial se abateu sobre o país, apesar do enorme programa de privatizações
executado pelo Governo Cardoso. (FILGUEIRAS: 2007, p. 116)
Outra versão sobre o processo de privatização promovido durante o governo
de FHC é dada por Ribeiro Jr. (2011). O autor usa documentos, de cartórios,
bancos nacionais e estrangeiros e de empresas de consultorias, para mostrar
como foram feitos desvios de verbas das privatizações para contas bancárias em
paraísos fiscais.
São operações realizadas pelo clã Serra – sua filha
Verônica Serra, seu genro Alexandre Bourgeois, seu primo político Gregório
Marín Preciado, seus muitos sócios, seus amigos e seus colaboradores. E outros
tucanos de altos poleiros. Em muitos casos, são transações envolvendo empresas
brasileiras e empresas offshore no
paraíso discal das Ilhas Virgens Britânicas, escoradas no anonimato” (RIBEIRO
JR.: 2011. p. 30)
Além das denúncias de lavagem de dinheiro, Ribeiro Jr. (2011) também
aponta alguns dos casos mais famosos de privatização de estatais brasileiras.
Entre eles estão a Excelsa, companhia de eletricidade do Espírito Santo; a Vale
do Rio Doce, Companhia Siderúrgica Nacional, Ferrovia Paulista S.A. (Fepasa),
Light, Copesul, Usiminas, entre outras. E também critica o processo:
Independentemente do juízo que cada um possa fazer sobre a
eficácia ou ineficácia do Estado ao gerir os bens públicos, ninguém precisa ser
um inimigo do mercado para perceber que o modelo de privatização que assolou o
Brasil nos anos FHC não foi, para ser leniente, o mais adequado aos interesses
do país e do seu povo. Nem mesmo a Nossa Senhora Aparecida do fundamentalismo
neoliberal, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, teve o atrevimento
de fazer o que foi feito na desestatização à brasileira. Nos anos 1980,
Thatcher levou ao martelo as estatais inglesas, pulverizando suas ações e
multiplicando o número de acionistas. Contrapondo-se a essa “democratização”, o
jeito tucano de torrar as estatais envolveu “doação de empresas estatais, a
preços baixos, a poucos grupos empresariais”. (RIBEIRO JR.: 2011, p. 37)
O autor também recorre à obra de Dória (2013) para relatar informações
do processo. Além disso, para criticar a imprensa o autor transcreve uma
conversa interceptada por escutas entre Luiz Carlos Mendonça de Barros, então
presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e
futuro ministro das Comunicações, e FHC:
Vale lembrar um telefonema de FHC para Mendonça de Barros.
Queria saber a quantas andava a preparação do leilão das teles. Recebe, como
resposta, que “estamos com o quadro praticamente fechado”. À vontade, os dois
comentam o tom apologético adotado pela mídia para saudar as privatizações, que
catapultariam o Brasil ao concerto das grandes nações. Não era ingenuidade. Se,
de um lado, os grandes conglomerados propagandeavam as benesses que a venda do
patrimônio público traria ao país, de outro, sonegavam aos seus leitores,
ouvintes e telespectadores a condição de integrante de consórcios que disputavam
a aquisição das teles.
– A imprensa está muito favorável, com editoriais –
comenta Mendonça de Barros.
– Está demais, né – diz FHC. – Estão exagerando até... –
acrescenta, mordaz com seus áulicos midiáticos.
De acordo com Dória (2013), “nos oito
anos de reinado de Fernando II, com o respaldo maciço da mídia – até porque
diretamente interessada no butim – o Brasil foi a leilão. A privatização
gravou-se de tal maneira no imaginário nacional, que se transformou na primeira
e inesquecível marca da gestão de FHC” (Dória: 2013, p. 17). Este autor foca em
como as privatizações e o Plano Real (implantado em 1994) foram usados em prol
da reeleição de FHC em 1998, quer seja por meio do uso da opinião pública, no
caso do plano econômico lançado no governo de Itamar Franco e creditado a FHC,
quer seja por meio de captação de recursos vindos das privatizações. Quanto às
privatizações, Dória (2013) elenca as vendas das estatais feitas durante o
governo PSDB:
·
CEE Distribuição, entregue aos americanos da
AES;
·
Bandeirante Energia, entregue aos portugueses;
·
Celpe, para os espanhóis do grupo Iberdrola;
·
Cemar, para os americanos da Ulem Mannagement
Company;
·
Cesp Tietê, para os americanos da Duke;
·
Ceteep, arrematada pelos colombianos da estatal
Colombiana SA;
·
Coelba, levada pelos espanhóis que levaram a
Celpe;
·
Comgás, para os ingleses da British Gas/Shell;
·
Cosern, para os já citados espanhóis;
·
CPFL, arrematada pelo grupo brasileiro VBC;
·
Elektro, vendida para os americanos da Enron;
·
Eletropaulo para os americanos que levaram a
CEEE;
·
Escelsa, para os portugueses da GTD
Participações, junto com o consórcio Bancos Iven AS;
·
Gerasul, levada pelos belgas da Tractebel;
·
Light, entregue ao grupo franco-americano
EDF/AES;
·
RGE, para os mesmos brasileiros do VBC;
·
Bamerindus, garfado pelos britânicos do HSBC;
·
Banespa, para os espanhóis do Santander;
·
Banco Meridional, vendido para o Banco Bozano;
·
Banco Real, par ao grupo ABN-AMRO, depois sob
controle do espanhol Santander;
·
Banco do Amazonas AS, vendido ao Bradesco;
·
BEG, Benco de Goiás, arrematado pelo Itaú;
·
E entregaram a particulares os minérios da
Mineração Caraíba, da Vale do Rio Doce;
·
E entregaram a Petroquímica União AS. (DORIA:
2013, p. 199)
BIONDI, Aloísio. O
Brasil privatizado: um balanço do desmonte do Estado. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2003b.
DÓRIA, Palmério. O
príncipe da privataria. São Paulo: Geração Editorial. 2013.
FILGUEIRAS, L. A
História do Plano Real. São Paulo: Editora Boitempo, 2010.
GIAMBIAGI, Fabio. Estabilização,
reformas e desequilíbrios macroeconômicos: os anos FHC. In: GAMBIAGI, F.;
VILLELLA, A.; BARROS DE CASTRO, L; HERMMAN, J. Economia Brasileira e Contemporânea (1945-2004) Editora Elsevier/Campus,
2005.
RIBEIRO JR., Amaury. A
privataria tucana. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
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