Uma das minhas maiores vergonhas, aos 30 anos de idade, era
nunca ter visitado o Museu de Artes de São Paulo (MASP). Quando tinha tempo,
não tinha dinheiro por estar desempregado; quando tinha dinheiro, o inverso.
Sempre gostei muito de visitar museus. Como turista, apesar
das poucas e limitadas viagens, sempre tentei ir um aqui e outro lá para ver o
quanto da história local eles guardavam. Em Limeira (SP), trabalhei durante um
tempo em um prédio que brigava o museu, a escola de artes municipais e a
biblioteca da cidade. Apesar do acervo limitado e a falta de atenção do
Executivo para com as peças que fazem parte da história da cidade, as obras
estavam lá, sob os cuidados de um ou dois funcionários que realmente entendiam
a importância de guardar alguns elementos da história.
Em outras viagens, aquelas com a família para a praia ou em
viagens sozinhos, conheci outros museus com acervos sobre a história local. Em
Pedreira (interior de SP), Santos e Itanhaém (litoral SP) e Penedo (AL), cada
um a seu modo e determinado pela sua história, esses museus eram tão importantes
para suas cidades quanto o de Limeira, porém, também me lembro de ter a mesma
impressão de carência de cuidados por parte das instituições públicas.
O primeiro museu realmente grande e “suntuoso” que conheci
foi o Museu de História Natural de Nova York. Em 2013, ganhei um concurso
cultural da Livraria Cultura e pude andar pelos corredores entre animais
empalhados, representações de ossos de dinossauros, peças de vestuário,
instrumentos de trabalho e tantos outros itens guardados naquele lugar. Naquele
dia fiz uma viagem dentro de outra.
O Museu de História Natural não é algo para simplesmente
visitar em uma manhã, como havíamos planejado (eu e minha irmã). Ele requer
praticamente um dia inteiro se você pensa em cumprir com toda a proposta de
aprendizagem que o local te oferece. São inúmeras e (quase) incontáveis
informações sobre economia, biologia, sociologia, antropologia e tantas outras
áreas do conhecimento, inclusive astronomia. Cada peça continha sua descrição e
explicações contundentes sobre a importância daquele algo exposto dentro de
quatro paredes.
Com um cronograma apertado, passamos pelo Museu de História Natural
apenas como turistas apressados para cumprir o cronograma. Embora não tenhamos
agilizado os passos para ver tudo e cumprir com o tempo previsto, não
conseguimos, nem de longe, aproveitar todas as informações e exposições que o museu
reúne. Lembro de ter ficado com inveja de alguns adolescentes que vi andando
por lá com caderno e caneta nas mãos. Motivo pela curiosidade até parei um e
perguntei o que eles estavam fazendo. A menina me disse que era uma tarefa da
escola. Não lembro se ela entrou em detalhes sobre essa tarefa, mas achei uma
forma excepcional de ensinar e aprender com peças que tornam a história
praticamente viva ali diante dos olhos.
O MASP
Na experiência com o MASP resolvi fazer diferente daquela
que tive até então como turista em Nova York e até em minha própria cidade
natal. Com tempo, mas sem dinheiro, aproveitei que o museu tem entrada gratuita
de terça-feira e me programei para passar a tarde por lá. Ao pesquisar no
Google algumas informações sobre o MASP, vi que a média de tempo que os
visitantes ficam no local era de 1h a 2h. Pouco tempo, portanto, uma tarde bastaria
e realmente bastou.
Reservei a terça-feira, dia 3 de abril, para a visita. A
motivação para ir agora e não antes foi pelos estudos do Modernismo brasileiro
da década de 1920. Esse é o tema da disciplina de Literatura Brasileira I, do
curso de Letras na USP. A professora já havia abordado algumas características
de obras e movimentos de vanguarda europeus e brasileiro e estava começando a
apresentar a semana de 1922 nas aulas. Além das aulas expositivas, duas
leituras indicadas também colaboraram para a decisão: um capítulo do livro de
Peter Bürger, “A teoria da vanguarda”’; e o artigo de Walter Benjamin, “A obra
de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Esses dois textos fizeram
parte das discussões sobre o conceito de arte e as modificações pela qual ela
passou ao longo do tempo até as primeiras décadas do século XX no Brasil.
Benjamin, por exemplo, trata em seu texto sobre a aura das
obras de arte. Em suma, segundo ele, aura “É uma figura singular, composta de
elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por
mais perto que ela esteja.”[1]
Para além de uma definição sumária, o conceito envolve aquela aura, quase
divina, que as obras têm. Sendo mais prático: é aquele ficar-de-queixo-caído
quando nos deparamos com algo que mexe com os sentidos e nos surpreende pela
sua beleza e singularidade. É o ficar chocado frente a algo glorioso. Enfim...
há diversas definições que acredito que apenas a real experiência consegue
definir com quase clareza.
Além disso tudo, na segunda-feira antes de minha visita a
professora havia comentado sobre Aleijadinho[2]
e a importância que os modernistas brasileiros viram na sua obra. O MASP estava
com uma exposição justamente sobre nosso artista e a professora fez essa
indicação de visita. Ok, vamos lá então conferir.
“Imagens do Alijadinho”
Todas trabalhadas em madeira, as exposição das “Imagens doAlijadinho” é um mergulho sobre a religião. Confesso que, apesar de só ter uma
formação religiosa, mas não exercê-la, a exposição se restringiu apenas à
apreciação das obras e a visão a composição do artista. Por ser leigo em artes,
tentei esforçar minha visão para além daquilo que estava exposto à minha
frente. Neste sentido, consegui observar alguns aspectos interessantes das
imagens, mas fiquei profundamente incomodado com outras informações.
Exposição "Imagens do Aleijadinho", no MASP (Foto de divulgação) |
Cada imagem ali exposta tinha seu nome e a época em que fora
feita. Eram representações de diversos santos que faziam parte do imaginário e
da religião mineira do século XVIII. Algumas realmente lindas, como a Nossa
Senhora das Dores, feita entre 1791 e 1812, o São Francisco de Assis (século
XVIII) e a Santa Ana Mestra (1791-1812). Ao olhar essas obras de perto, dá para
ver, aqui e ali, algumas “rachuras” (acho que posso dizer assim) do entalhe da
madeira.
"Nossa Senhora das Dores" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin) |
A pintura de cada uma delas também é algo muito bonito de se
admirar. Enquanto algumas parecem ter recebido apenas uma camada de verniz
(como o São Francisco de Assis); outras são ricas em detalhes nas estampas dos vestidos
e letras no livro de Santa Ana Mestra.
"Santa Ana Mestra" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin) |
Detalhe do livro de "Santa Ana Mestra" (1791-1812), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin) |
De toda a exposição, contudo, o que mais me chamou a atenção
foram os proprietários das obras. Isso foi algo que sempre me incomodou nas
artes e não é tanto pelo caráter comercial da composição de algumas obras
(quase como a reprodutibilidade criticada por Benjamin). Há obras totalmente
comerciais, mas que mantém o artista presente ali em cada traço, cor e
composição. O que me incomoda, de verdade, é saber que algumas estátuas do
Aleijadinho, como as representações de São Manoel, de Nossa Senhora da
Conceição, São Francisco de Assis, entre outras, pertencem a alguma Pessoa
Física (com CPF e muito dinheiro para comprar a obra) e não à sociedade e à
cidade na qual a obra foi feita. Essa é uma discussão mais batida que limão com
cachaça e açúcar, mas da qual eu não consigo me isentar. São obras lindas que
ficam na estante de alguém. De vez em quando saem dessa prateleira para compor uma
exposição aqui e acolá, mas que são “propriedade” de alguém. Bom... obras de
arte são patrimônio e entram até nos balanços de grandes empresas, então é uma
discussão que já nasce morta, infelizmente.
"São Francisco de Assis" (século XVIII), de Aleijadinho (Foto de Alex Contin) |
Acervo em transformação
Depois de passar pelo primeiro andar, onde está Aleijadinho,
parti para a exposição de obras da coleção do museu. A exposição “Acervo emtransformação” realmente me impressionou logo de cara pela forma como as obras estão
expostas. Elas estão ali, a poucos centímetros da sua respiração e, vale dizer,
podem sofrer danos se você respirar perto demais ou quiser colocar o dedo
indicador na tela! Muitas pinturas são emolduradas com vidro, porém, várias
não. Há uma fita no chão que indica a distância que você precisa manter do
quadro, mas é uma distância realmente minúscula. Vi um adolescente quase
colocando o dedo em uma obra e por um segundo senti o que é um princípio de
infarto.
Obras do "Acervo em Transformação" nos seus cavaletes de cristal. Quadro de Monet em destaque. (Foto de Alex Contin) |
Segundo o MASP, o “Acervo em transformação” retoma os
cavaletes de cristal de Lina Bo Bardi e têm o objetivo de realmente aproximar o
público das obras:
O retorno
dos cavaletes não é um gesto nostálgico ou fetichista em relação a uma
expografia icônica, mas deve ser compreendido como uma revisão do programa
museológico de Lina Bo Bardi com suas contribuições espaciais e conceituais. A
dimensão política de suas propostas é sugerida pela galeria aberta,
transparente, fluida e permeável, que oferece múltiplas possibilidades de
acesso e leitura, elimina hierarquias, roteiros predeterminados e desafia
narrativas canônicas da história da arte. O gesto de retirar as pinturas da
parede e colocá-las nos cavaletes aponta para a dessacralização das obras,
tornando-as mais familiares ao público. Ainda, por outro lado, as legendas
informativas colocadas no verso das obras possibilita um primeiro encontro com
elas livre de contextualizações da história da arte. Nesse sentido, a
experiência do museu torna-se mais humanizada, plural e democrática.[3]
Achei realmente incrível essa proposta de aproximação. Ter
as obras tão próximo de nós, público, permite observar os traços, as cores, as
texturas e os movimentos dos pinceis dos artistas. Em algumas obras, como “A
canoa sobre Epte”, pintada por Monet por volta de 1890, parece ser importante o
fato de você poder ver como ele pintou a água e de que forma usou tanto suas
pinceladas como suas cores para fazer o reflexo na água. Em outras obras, como
as de Picasso, a mesma coisa acontece. Sendo assim, essa proximidade permite contemplar
muito mais que apenas a imagem.
"A canos sobre Epte" (cerca de 1890), de Monet (Foto de Alex Contin) |
Detalhe da "A canos sobre Epte" (cerca de 1890), de Monet (Foto de Alex Contin) |
A primeira obra, a esquerda, um grupo de pessoas passava a
ideia de uma família, mas uma família realmente pobre. Suas roupas praticamente
de trapos e as expressões de sofrimento em uma ilustração nem um pouco “realista”
(com os traços bonitinhos de um autorretrato, por exemplo), passaram uma noção
de realidade crua e muito cruel. Na obra da esquerda, tive a impressão de ver
praticamente a mesma família retratada ao lado, como se fossem dois momentos de
uma vida seca. Nessa segunda obra a família chorava. Não eram lágrimas azuis,
redondinhas e perfeitas, mas sim ocres, da cor de uma terra na qual nada vinga,
quase nada cresce. Essas areias, ou lágrimas, eram derramadas pela criança
morta dos braços de uma mãe aparentemente inconsolável.
"Criança Morta" (1944), de Portinari (Foto de Alex Contin) |
Da série "Retirantes" (1944), de Portinari (Foto de Alex Contin) |
As duas obras, de Portinari, foram pintadas em 1944, seis
anos após a publicação da primeira edição de “Vidas Secas” (1938), Graciliano
Ramos. As telas fazem parte da coleção Retirantes e seus nomes são totalmente
dispensáveis frente ao que elas nos apresentam de forma extremamente rica e “real”.
Cada um a seu modo, Portinari e Ramos, retrataram a questão nordestina de suas
épocas que hoje muitos continuam negando que existe ou, o que é pior, um dia existiu.
No meio de tantas pinturas lindas, que aqui ou ali se desviaram ou não do
academicismo de suas épocas, os quadros do Portinari e seu intertexto com “Vidas
Secas”, são um soco tão grande no estômago que elas dizem “Você quer aura, @?
Então toma!” Além disso, elas adquirem um sentido enorme ao estarem expostas no
MASP: na Avenida Paulista, em São Paulo, a capital econômica do Brasil que
tanto faz questão de perpetuar o preconceito pelos nordestinos (e,
sinceramente, por quase tudo o que não é do Sudeste e de São Paulo).
Cada obra da exposição tem um pequeno texto explicativo
atrás dela. A intenção, segunda a descrição do MASP, é justamente fazer o
público experienciar primeiro a obra e depois ter mais informações sobre ela.
Contudo, no caso dessas duas telas do Portinari, quase não dá vontade de querer
entender o que elas significam. “A imagem já é chocante, talvez saber mais
sobre ela desgrace ainda mais a cabeça!”, pensei. A vontade é só de ficar ali,
colhendo detalhes com os olhos, lendo toda a narrativa que está por detrás “daquilo”
e, acima disso, enxergar a crítica feita por meio daquela imagem. É realmente
surreal.
“Maria Auxiliadora: Vida cotidiana, Pintura e Resistência”
Por fim e para recuperar o fôlego, as cores vibrantes de
Maria Auxiliadora. A exposição faz parte da programação do “ano dedicado às
histórias afro-atlânticas no MASP – as histórias dos fluxos e dos refluxos
entre África e as Américas através do Atlântico”[4].
O colorido foi o que mais me chamou a atenção. Nos quadros da Auxiliadora parece
não haver sequer resquício de rigor acadêmico da pintura. A liberdade, junto
das cores, pulam dos quadros junto com a cultura brasileira e suas
peculiaridades regionais.
"Banhistas" (1973), de Maria Auxiliadora |
Quando sai do espaço dedicado às obras, fiquei imaginando as
críticas feitas por aqueles intelectuais mais clássicos que só enxergam arte a
partir de um conceito bem fechado (quase sempre elitista) obtido em livros (e
não na experiência prática). Eis que, enquanto esperava ser atendido pelo
funcionário da lojinha do MASP, ouvi uma conversa que me respondeu de pronto
essa indagação pessoal. Um garoto bem branco, magro, alto, com cerca de 20 anos
talvez, esperava o funcionário terminar seu cadastro no clube “Amigo MASP”, eis
que é questionado: “Gostou das obras da Maria Auxiliadora?”. Ele fez uma cara
de não muita amizade e comentou que não. O funcionário, que provavelmente já
captara o gosto do menino, comentou: “Ela não tem um rigor acadêmico mesmo, né?”.
Foi praticamente uma pergunta retórica: o garoto havia
deixado claro pela expressão e pelo tom de seu “não” que aquele tipo de obra,
mais popular, não o agradava. Indo além de uma interpretação superficial e
passando para uma mais especulativa, o que parece não ter agradado o garoto era
única e exclusivamente a falta do tal “rigor” da pintura. Com isso em mente,
ele provavelmente sequer olhou para a crítica feita pela artista. E, para falar
a verdade, não era difícil enxergar essa crítica: a exposição contava com
explicações e com um acervo pequeno de notícias e outras informações sobre como
a Maria Auxiliadora usava sua arte como uma forma de resistência. Estava quase
tudo dado para o interpretante, bastava escolher querer ou não interpretar.
Enfim, perder a virgindade do MASP foi uma experiência muito
bacana. Tentei colocar minhas críticas pessoais à arte de lado para realmente
tentar enxergar sua “evolução” ao longo do tempo. De certa forma o museu me
ajudou muito nessa tarefa. As explicações das obras, quando lidas numa
sequência como apoio à mensagem de cada pintura, ajudam muito a ver como a
sociedade era retratada mimeticamente até um determinado período e como as
obras incorporaram o conceito de arte à partir do século XIX (principalmente
considerando toda a discussão sobre autonomia da arte feita por Bürger).
[1] BENJAMIN, Walter. Magia e técnica,
arte e política. (1935/1936) Tradução de Sergio Paulo Rouanet. Editora
brasiliense. Citação na p. 170.
[2] A exposição “Imagens do
Aleijadinho” ficará disponível até dia 3 de junho de 2018. Mais informações
aqui: https://masp.org.br/exposicoes/aleijadinho
[3] Texto da descrição da
exposição “Acervo em transformação” do MASP. Disponível aqui: https://masp.org.br/exposicoes/acervo-em-transformacao
[4] Texto da descrição da
exposição “Maria Auxiliadora: vida cotidiana, pintura e resistência”,
disponível no MASP até 3 de junho de 2018. Fonte e mais informações aqui: https://masp.org.br/exposicoes/maria-auxiliadora-da-silva-vida-cotidiana-pintura-e-resistencia