Para este texto eu precisei preparar um café. Liguei o
computador e posicionei o copo térmico bem ao seu lado. Eu sei exatamente o que
quero escrever. Na verdade é o que eu “preciso” escrever. Uma pesquisa rápida para
confirmar algumas informações e está tudo pronto. Este texto é sobre Rory
Gilmore. É também uma crítica ao “revival” do seriado Gilmore Girls que entrou
na grade da Netflix hoje, dia 25 de novembro de 2016.
Os primeiros anos de
Gilmore Girls
Não é possível existir outra palavra que se encaixe melhor
em uma hashtag do Twitter que “revival” (#GilmoreGirlsRevival). Stars Hollow
(Estados Unidos), a cidade da ficção onde tudo acontece, não mudou. Os personagens,
e também os atores, não mudaram. Se há alguma decoração, alguma casa ou qualquer
coisa que está diferente das temporadas originais do seriado (lançado em 2000),
são apenas detalhes. É literalmente um “revival”. Assistir à nova temporada,
que recebeu o nome de “Gilmore Girls: A year in the life”, é voltar no tempo e
sufocar as saudades daqueles personagens que marcaram tanto uma geração (a
minha, pelo menos).
Não lembro a data exata de quando assisti ao seriado pela
primeira vez. No começo da década de 2000 ele era transmitido no Brasil por um
canal de TV aberto (SBT, eu acho). O fato é que já naquele momento houve uma
identificação minha muito forte com uma das personagens principais, a Rory
Gilmore. Ela lia compulsivamente; eu lia muito, mas jamais poderia me comparar
à ela. Lembro que cheguei a ficar deprimido enquanto assistia à série por
pensar que eu não tinha lido nem metade dos livros que ela lera até e a partir
dos 16 anos. Ela e sua mãe eram viciadas em café; ela e sua mãe me viciaram em
café. Inclusive faço uma pausa para tomar um gole.
Rory resolveu cursar Jornalismo; eu cursei Jornalismo.
Acredito que foi exatamente nos anos que eu estava nessa minha primeira
faculdade (entre 2005 e 2008) que acompanhei mais de perto a história da
personagem. Como ela, eu era entusiasmado com a profissão e o estudo dela.
Queria escrever histórias, entrevistar pessoas, noticiar fatos para leitores...
Queria viajar para outras cidades, para outros países; ser correspondente
internacional, acompanhar uma disputa presidencial... Trabalhei na área, assim
como Rory, e a paixão só aumentou. Eu, diferente de Rory, continuei a estudar.
Fiz uma nova graduação em Ciência Econômicas para me enveredar no jornalismo
especializado; fiz um mestrado em Divulgação Científica e Cultural também com o
mesmo propósito.
Dez anos depois (o primeiro episódio da última temporada foi
ao ar dia 26 de setembro de 2006) a Netflix resolve produzir esse “revival”.
Dividido em quatro episódios, um para cada estação do ano, a escritora e
produtora executiva Amy-Sherman Palladino trouxe o universo todo de volta para
os fãs e mostrou como está Rory Gilmore, agora com 32 anos. Foi exatamente a
condição atual dela e a forte identificação com minha realidade que motivou
este texto.
A melhor aluna de seu curso em Yale, Rory tinha um futuro
promissor; não fui o melhor aluno de minha turma, mas me destaquei em alguns
pontos. Contudo, ao se formar, a personagem se viu desempregada. Ela até
recebeu ofertas de emprego aqui e ali, mas não conseguiu uma vaga em um curso
promovido pelo New York Times. Quando tentou recorrer às outras ofertas que
recebera, as vagas já estavam preenchidas e Rory se viu desamparada. Minha
situação, quando me formei, era um pouco diferente: eu tinha emprego, trabalhava
no Jornal de Limeira (praticamente a Gazeta de Stars Hollow), mas também não
consegui uma vaga no curso do jornal O Estado de S. Paulo, que na época tinha
muito prestígio, assim como o do NYT tinha para Rory.
O parágrafo acima resume a 7ª temporada, a última disponível
até ontem. No revival, no entanto, não é mencionado
todos os passos de Rory nos dez anos que se passaram – claro, até porque não
daria tempo. Contudo, sabemos que ela não voltou a estudar; não fez mestrado e
nem especialização. Dividia sua rotina entre Londres e Stars Hollow – além de
outras cidades nas quais suas caixas de roupas estavam espalhadas.
Eu, claramente não tive essa “sorte” em relação à rotina. Fiquei
dividido entre Campinas e Limeira, cidades do interior de São Paulo. Saí do
jornal que trabalhava em 2010 para fazer cursinho pré-vestibular e encarar a
nova graduação. Em Campinas, morei em três apartamentos diferentes. Não tive
caixas de roupas e pertences espalhadas em diversas casas, mas empacotei e
desempacotei meus livros e outras coisas nas mudanças. Não voltei a trabalhar
na área de jornalismo, mas não foi por falta de interesse, mas sim por falta de
vagas no mercado de trabalho.
Um mix de crises: 30
anos e jornalismo
Apesar destes detalhes, a maior identificação com a
personagem se deu por causa de sua situação profissional atual: desempregada e
sem perspectivas paupáveis. A nova temporada conseguiu mostrar a situação de
inúmeros jornalistas brasileiros. Não sei se profissinais norte americanos
passam pelo mesmo problema e nem se Amy-Sherman Palladino teve a real intenção
de abordar essa questão.
O fato concreto, no entanto, é que não há emprego. O
jornalismo passa por uma crise há anos e ela se acentuou nestes últimos.
Diversos jornais grandes, e principalmente os pequenos, demitiram vários
profissionais ou fecharam as portas – o Jornal de Limeira onde trabalhei, por
exemplo, não existe mais. Alguns veículos estão se aproximando cada vez mais de
seus leitores e transformando eles em colaboradores de conteúdos – o que pode significar
mais perdas para o mercado de trabalho de jornalistas. Não precisamos sequer de
diploma para exercer a profissão! E, além disso, fica clara a de Marx que diz,
em outras palavras, que quem tem um osso não vai largar jamais; enquanto isso,
os cachorros famintos se viram como podem com as sobras (1).
Rory trabalha como freelancer na nova temporada, é,
portanto, um desses cachorros trabalhando com sobras. Ela tenta apresentar seus
textos para um veículo famoso e até propõe escrever de graça só para mostrar
sua capacidade, mas não consegue emprego de jeito nenhum. A personagem também
tenta escrever um livro com/sobre uma figura emblemática que aparece na nova série
– seria praticamente um trabalho de ghostwriter.
Essa empreitada também não dá certo. Rory recorre, então, a um site que a
perseguia há tempos para tê-la na equipe. Adivinhe? Não dá certo, claro.
Depois de todas as empreitadas fracassadas, Rory volta para
a casa de sua mãe. Com 32 anos, ela se recusa a fazer parte de um grupo de
jovens adultos de Stars Hollow, todos na faixa dos 30 anos, morando com os pais
e todos desempregados. Mais uma realidade atual e cada vez mais comum retratada
pela escritora? Bem provável.
Não vou contar o que Rory decide fazer e qual o fim da
personagem nesta nova série. No entanto, os fatos apresentados por Amy-Sherman
Palladino e encarnados por Rory são muito reais. Eles mostram a crise do
jornalismo e a crise dos 30 anos de forma clara, porém eufemisado com o doce
encanto de Stars Hollow. Para os e as demais jornalistas que estão
desempregados e não têm nenhuma perspectiva de emprego no Brasil, recomendo a
série. Mas atenção: não vale assistir apenas esse “revival”! Acompanhar a
história inteira de Rory Gilmore é essencial para entender as crises pelas quais
a personagem passa.
Como mencionado, o ponto mais evidente dos quatro episódios
novos é a situação da profissional. Quantos jornalistas não trabalham como
freelancer atualmente? Quantos não se sujeitam a receber muito menos que o piso
salarial da categoria para trabalhar 44 horas semanais? Em todas essas
questões, vale observar, está a qualidade da informação. Praticamente com uma
lógica de produção just-in-time, os
profissionais com emprego fixo se apropriam da informação e na mesma hora
precisam produzir suas notícias. Um ritmo acelerado pela internet e pela
competição para um mercado cada vez mais restrito de leitores ainda conscientes
da necessidade de atualização. Ainda mais restrito no caso de áreas
especializadas, como o jornalismo econômico. Neste caso, a notícia, além de ser
publicada de forma rápida e, algumas vezes, sem contextualização nenhuma, dialogam
apenas com aqueles que entendem o vabulário da área – o que exclui a grande
massa.
Vou cumprir minha promessa de não falar qual o fim que a
escritora da série deu para Rory Gilmore. No entanto, adianto que ela não segue
na profissão de jornalista. Assim como muitos profissionais da área, a
necessiade fala mais alto e qualquer emprego é emprego. Os sonhos de escrever
história, de informar e de formar leitores, fica apagado por um mercado que se
aproveita da fragilidade da categoria para pagar menos, receber mais trabalho e
aumentar cada vez mais a massa de jornalistas desempregados.
Fica, portanto, uma sugestão de entretenimento e reflexão
sobre o mercado de trabalho para jornalistas!
(1) Marx traçou um esquema muito pertinente e que nunca vai perder sua atualidade no livro O Capital. Segundo ele, o capitalismo gera uma massa de desempregados que é extremamente útil para o sistema. Aqueles que estão empregados (os cachorros com ossos), além de não abrirem mão de suas vagas, se sujeitam a uma exploração cada vez maior para se manter no emprego. Estes são pressionados pelos desempregados que aceitam qualquer oportunidade e qualquer salário para ter um emprego formal. A pressão vem dos dois lados: os empregados pressionam para ficar e impedem que vagas sejam criadas por aceitarem horas excessivas de trabalho; os desemprados pressionam para entrar, aceitando trabalhar quantas horas forem necessárias. Um dos efeitos positivos para o capitalismo é a diminuição do salário, que fica cada vez menor quando comparado ao esforço e ao lucro que os empregados proporcionam aos patrões.
Um comentário:
Muito bom o texto! Aliás, por falar em crise, dia desses, uma amiga jornalista compartilhou um processo de seleção para treinamento em um grande veículo (não me lembro de Folha ou Estadão) que anunciava que não era preciso ser formado em jornalismo... Decepcionante a falta de importância que se dá, neste país, à formação acadêmica!
Mas o seriado é bom! Isso lá é! Abraços!
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